Ensaio sobre as incertezas – Por Michel Yakini
A Coluna Michel Yakini apresenta crônicas, contos e poemas deste autor paulistano, atuante no movimento literário das periferias de SP.
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Ensaio sobre as incertezas
“A palavra incerteza aparecerá muito mais
nas nossas vidas e nós aprenderemos finalmente
o quanto querer controlar a vida é uma ilusão”.
Débora Nunes – Carta para a geração do fim do mundo
Quando foco na busca pra retornar ao “normal” ou construir um “novo normal”, a ansiedade, o medo e a tristeza reinam no horizonte dos meus dias. Aponto culpados, elejo os heróis e me afogo em desânimos. Me sinto só, olhando o espelho das minhas verdades sufocadas.
“O tempo é de coletividades”, disse a moça que vende pastéis na feira de domingo. “A culpa é do individualismo”, bradou o megafone do carro dos ovos ontem pela manhã, enquanto isso carrego uma enxada na mão, encontrando coragem pra abrir uma trilha na mata que fica nos fundos de casa.
Um vizinho, que é reikiano, me contou que quem controla a vida de forma exagerada, costuma ter problemas de circulação sanguínea, porque a emoção e o sentimento que eu ofereço pra fora tendem a somatizar no meu corpo físico.
Lembrei do conceito de individuação, que tá presente na regência de Exu, onde o ser coletivo, o ser total, antes de tudo é um indivíduo. No texto “Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação”, Eduardo David Oliveira explica que Exu “é o todo da sabedoria africana e essa sabedoria se expressa não em conceitos de totalidade, mas em expressões de singularidade”.
Como pensar em coletividades, se eu não refletir minha individuação? Será que aquilo que eu desejo praticar no mundo é algo que realmente eu tenho pra oferecer? O que eu tenho oferecido? Como chegar nesse discernimento?
Débora Nunes, em “Carta para a geração do fim do mundo”, nos convida a desenvolver a intuição que, segundo ela, “é um tipo de visão íntima (eu diria cósmica), possibilitada quando mente e coração estão em sintonia. Ela envolve o corpo e a alma e com a intuição é possível escolher o melhor caminho em face do incerto, da dúvida, do medo“.
Encarar o medo é um ato de amor, do amor como ação, como ensina bell hooks. Um amor próprio, que ginga com a individualidade e se faz presente na vida coletiva. Em “Tudo sobre o amor – novas perspectivas”, hooks explica que “Culturas de dominação se apoiam no cultivo do medo como forma de garantir a obediência. Em nossa sociedade, falamos muito do amor e pouco do medo. Todavia, estamos terrivelmente apavorados o tempo todo. Como cultura, estamos obcecados com a ideia de segurança. Contudo, não questionamos porque vivemos em estados de extrema ansiedade e terror”.
Aos poucos, tento fazer o exercício da inversão, da contradição que Exu nos propõe, pra encarar o igual de forma diferente. Luciana Machado (Mestre Wakanda), disse durante uma live que ao reconhecer a Terra como um corpo vivo, é preciso considerar que o único ser que esse corpo tem expurgado pra se regenerar é o ser humano. Neste sentido, os anticorpos da terra, os quais chamamos de vírus, combatem aquilo que é uma ameaça a sua existência, ou seja, a Terra vem eliminando do seu corpo um vírus chamado humanidade.
Nada simples pensar sobre isso num momento em que o trauma da perda de parentes e pessoas queridas se alastra num país organizado pra dar errado, na mão de mandatários que tão se lixando pra vida da população. A questão é que pra além de nós, a Natureza também tem sido destruída há anos e por isso tem agido pra continuar viva.
Considerar minha participação nesse contexto pra além da exclusividade de ser vítima, me ajuda a pensar fora do código da passividade, me convida a reinvenção e a responsabilidade, isso me permite construir caminhos que considerem as contradições e as incertezas.
No livro “A Alma Imoral”, Nilton Bonder explica que a vida pode ser um balanço entre a tradição, que instaura ações pra conservação do corpo, e a transgressão, que considera os movimentos da alma. A transgressão só é possível porque promove a traição das bases tradicionais e assim inaugura novos paradigmas, porém o corpo não é uma ordem distinta da alma.
Por isso, o “normal” e o “novo normal“, se é que existem, só podem coexistir e essa transição não vai vingar um mundo totalmente distinto do que já era. A ginga se mantém e pode ser que a diferença de percepção esteja no tanto de controle, aceitação ou medo que eu permito sentir. Nilton Bonder destaca que “a importância do presente está na responsabilidade que temos de honrar o passado e o futuro, numa medida artisticamente concebida de honrar compromissos e rompimentos”.
Então, sigo com a audição atenta aos anúncios de coletividades da feira de domingo e com a crítica à individualidade dita pelo do carro do ovo, mas entre isso ou aquilo, fico com as incertezas do movimento, pois como meu vizinho ensinou, tudo aquilo que eu tentar controlar, pode vingar uma veia entupida ou um medo trepidando no peito. Assim, a cada dia que passa a palavra incerteza, tem se revelado pra mim como sinônimo de coragem.
(Ilustração: Amanda Alves Prado).