“Ensine-me a desviar de bala perdida” – Um conto de Wuldson Marcelo
Ensine-me a desviar de bala perdida
Ele se lembra de que Ítalo Marabá, o designer de interiores dos famosos, havia escrito que “como agora é moda ser preto, essa horrorosa do cabelo bombril, vai ganhar o BBB” e que “o gordo lá, preto também, é chorão demais, até porque é um ator de quinta”. Ele apagou depois da repercussão, não antes de ser abraçado pela branquitude. Em um domingo de maio, com os Estados Unidos em chamas por causa da morte de um homem negro, George Floyd, em Mineápolis, Marabá postou uma tela preta em seu Instagram, com a frase “Não aguentamos mais isso” e a hashtag #BlackliveMatter.
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Tem gente que chama isso de hipocrisia. Talvez ele chame de coisa da branquitude.
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Vamos dar um nome a ele, pois, geralmente, preto não tem nome e nem voz. Como mulheres em filmes. Teste de Bechdel. Sem digressão, volta! O nome dele é Anderson. Eu conheci um Anderson na UFMT, ele era preto e estudante de Matemática, jogávamos futsal, e é provável que, naquela época, nos considerássemos sortudos ou privilegiados por termos ingressado em uma universidade federal.
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This is America
Don’t catch you slippin’ up
Don’t catch you slippin’ up
Look what I’m whippin’ up
This is America
Don’t catch you slippin’ up
Don’t catch you slippin’ up
Look what I’m whippin’ up
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Mais uma tela preta. Dá um coraçãozinho, não custa nada, massageia o ego do amigo branco, pois não é todo dia que ele pensa que a vida negra também importa. A lá, mais um. Toma coração, que pulsa no Instagram. Outra. A guria que chamou de mimizento quem fala de dívida histórica em relação aos negros e se defendeu dizendo que é filha de negra, uma mulher guerreira que foi empregada doméstica e nunca reclamou de nada, que apenas ensinou a sua cria o que significa batalhar e ter dignidade com o seu exemplo. Coraçãozinho.
Anderson sente um engasgo, uma dor que já atravessou a pele. É senso crítico desperdiçado. Descurte tudo e só não xinga, pois branco ofendendo é força de caráter, negro ofendendo é falta de educação. “A lá, típico deles”, disse Ítalo Marabá em um debate informal via comments do Facebook para jovem orgulhosa de seus cachos, quando ela o mandou pra pqp.
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Anderson pensou em umas rimas, lembrou da noite que tomou uns danone com os bróder e algumas minas. Tempo feliz! Com a quarentena, a ideia de isolamento bate forte e a melancolia vem. Só não vence, pois tem Alice ao seu lado, futura mãe de seus filhos, e o desejo de deixar seu rastro no mundo é mais forte.
“A carne negra é a mais barata do mercado”
“Negro tem que ser duas vezes melhor que o branco”
“Fogo nos racistas”
Se vira aí e faz um rap, truta!
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Será que somos programados pra morrer? Bala perdida, alvo abatido com sucesso. O menino tinha nove anos, era pretinho-claro, disse a mãe chorando, ela já havia perdido o irmão pro tráfico. Esse foi sentenciado por uma facção rival. Sabia cantar de cor “Diário de um detento”. A mãe, de vida inglória com o nome Glória, lamentava: “Tão falando que o meu bebê era aviãozinho, só porque o tio vendia droga”. Fizeram uma montagem de uma foto dele e publicaram nas redes sociais, trocando um livro por um fuzil. Menino não tinha nem compleição física pra segurar uma porra dessas.
Fake news que chama!
As pessoas jantam com essas notícias e tudo bem. É só mais um! Registra aí e segue em frente. É natural, como o gesto do policial, que, com a mão no bolso, asfixiou George Floyd. Antes, era gravata, agora é joelho no pescoço.
Pode se revoltar, mas não vem querer fazer arruaça, quebrar o Santander ou a Havan. Propriedade privada é tão importante quanto vidas, escreveu o empresário de 77 anos que está em quarentena, enquanto os corpos negros arriscam a vida pelo emprego que paga dois salários mínimos.
Covid tá matando mais… (preencha a lacuna).
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O Caso do Homem Errado: Zona Leste de Porto Alegre, 1987, Júlio César de Melo Pinto morto pela PM ao ser confundido com assaltantes de supermercado.
Costa Barros: 111 tiros, 5 jovens mortos.
Cláudia Silva Ferreira: Em Madureira, um tiro e o corpo arrastado por 350 metros.
Fuzilamento de músico e catador negros: 80 tiros disparados pelo Exército.
Complexo do Salgueiro: João Pedro, 14 anos, morto em operação da PF, 70 tiros no local.
Marielle Franco foi assassinada por ser uma mulher negra e não por ser comunista. Quantas estrelas do PT, do PSOL ou do PC do B foram eliminadas com logística e execução de filme policial gringo?
Amarildo presente!
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Anderson se pergunta se o Brasil não deveria estar ardendo em chamas agora. Não haverá democracia enquanto a questão racial não estiver em primeiro plano, enquanto não for o tema condutor das mudanças reais por igualdade e pelo fim de todo tipo de discriminação. Ele sonhou que atirava um coquetel molotov na fuça do presidente. Acordou transpirando e com sangue nos olhos.
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Ele acordou e a luta por mudanças já não era mais antirracista, era antifascista. Ou ela nasceu antifascista, e ele havia se enganado, se iludido novamente.
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O preto colocado na Palmares, o cúmplice, nomeado em evidente caso de desvio de função, “um dos nossos” quando elogiado por eles (token realizado com sucesso), disse que não dará dinheiro pra macumbeiro, que Zumbi era um escravocrata, cria selo de “não racistas” pra branco racista da sua turma. Mas, alguns afirmam que não é uma política racista do governo, é só um novo direcionamento.
Um eufemismo se torna brutalidade intelectual e mata mais que desgosto de amor.
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Tanto coisa, né, Anderson? Todo dia tem que matar um leão por dia, provar que não é malandro, torcer pra não levar um baculejo e desviar de bala perdida teleguiada.
Desviar de bala perdida teleguiada deveria ser um superpoder, estilo X-Men.
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Maluco, o bom da vida é fazer os caras olharem no seu rosto e não terem merda nenhuma pra reprovar em você. Só se for pra te chamar de negro arrogante e folgado. Daí, você acaba com eles em três tempos. Manda um papo reto. Aqui, o racismo não se cria.
Tô com Tereza de Benguela e Malcolm X, pensou Anderson. Serão, inclusive, os nomes das crianças.
Mulher tá grávida. Uma beldade com um nome tão lindo quanto ela: Alice. Aqui não tem aborto masculino, disse Anderson com um sorriso sincero, enquanto consertava o portão com uma furadeira nas mãos. Foi o último raio de felicidade que o jovem ofereceu a si mesmo, um homem realizado que seria pai dali a três meses.
Mãe, ensine-me a desviar de bala perdida!
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Faça a Coisa Certa…………………………………………………………………………………………………………………..Infiltrado na Klan.
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Anderson ouviu a última frase dita por um ser humano a ele ou sobre ele, “Aquele lá tá armado”. Uma rajada de balas abateu outro corpo preto. Questão de segundos. Furadeira confundida com uma minimetralhadora. Os disparos atingiram as costas do rapaz, perfurando o pulmão direito, e dificultando sua respiração pelo sangue acumulado na cavidade toráxica.
As últimas palavras de Anderson foram:
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Não consigo respirar!
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No dia seguinte, o Brasil ficou em silêncio. As telas pretas no Instagram não foram compartilhadas. O antirracista Ítalo Marabá escreveu “Parem de criticar a polícia. Vocês nem sabem o que aconteceu realmente. Tem que ouvir o outro lado também. Tudo é racismo, porra!”.
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No entanto, na comunidade de Anderson, moradores, ativistas e artistas negros e alguns brancos antirracistas (branco que é antirracista de verdade, oferece o seu corpo para a causa antirracista) deitaram no asfalto em protesto e gritaram “Não consigo respirar”. Homens com a mesma farda dos que abateram Anderson, tentaram dispersar os manifestantes. Não conseguiram desmobilizar o que o prefeito, o governador e o presidente chamaram de distúrbio e a revolta cresceu.
Enfim, o Brasil está em chamas!
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George Floyd presente! Anderson presente!
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Sem mais balas perdidas com o alvo atingido com sucesso.
Que bela utopia!
Sem justiça, sem paz!
Mãe, ensine-me a desviar da miséria humana.
(Ilustração de capa: Cumbe [2014], HQ de Marcelo D’Salete).