Entre o mundo e o corpo negro – Por Maria Ferreira
Na coluna mensal “Ubuntu” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Maria Ferreira escreve ensaios sobre Literatura Negra, buscando evidenciar aspectos de livros escritos por autores contemporâneos ou clássicos. O título da coluna faz menção ao significado da filosofia africana que diz “Eu sou porque nós somos”, uma lembrança de que as atuais conquistas por espaço e reconhecimento são frutos de uma luta e reivindicações de quem veio antes, que, portanto, devemos honrar quem abriu os caminhos que hoje pisamos e tenhamos consciência de que também estamos abrindo caminhamos na medida em que caminhamos. Uma lembrança de que a conquista de um indivíduo, é, na verdade, a conquista de um grupo.
Maria Ferreira é uma baiana que mora em São Paulo. Graduada em Letras-Espanhol pela UNIFESP. Desde 2013 administra o blog literário Impressões de Maria, no qual dá destaque para a Literatura Negra, fazendo um recorte de raça e gênero. É uma das autoras do livro Vozes Negras (Se Liga Editorial, 2019). Além de poemas, também está escrevendo seu primeiro romance.
***
Entre o mundo e o corpo negro
Eu sou um corpo, um ser, um corpo só
Tem cor, tem corte
E a história do meu lugar
Eu sou a minha própria embarcação
A minha própria sorte.
(Um corpo no mundo, Luedji Luna)
Entre o mundo e eu (2015) é mais do que um livro ou uma simples carta de um pai para seu filho, trata-se de relatos que condensam a experiência de ser um corpo negro nos Estados Unidos da América e vai além, condensa a experiência do que é ser um corpo negro no mundo. Muitas das situações expostas podem facilmente ser identificadas no Brasil, que assim como os Estados Unidos, teve as páginas de sua História escritas com a mancha da escravidão.
Ta-Nehisi Coates é um jornalista e escritor norte-americano. Entre o mundo e eu trata-se de uma carta que ele escreveu para seu filho de 15 anos, explicando para o filho, Samori, a partir dos acontecimentos históricos de seu país e de sua própria trajetória de vida, o que o filho, como homem negro, poderá encontrar no mundo, para que se proteja, para que entenda que terá muito pouco controle sobre o que vivenciará porque o modo como as relações sociais foram construídas não permitirá nem o controle de seu próprio corpo.
A experiência narrada por Ta-Nehisi Coates do que é ser um corpo negro na América revela que o indivíduo negro está constantemente sujeito a violências reais e simbólicas, e que seu corpo, aos olhos dos brancos, é dotado de uma fragilidade e descartabilidade assustadoras. Isso está presente, principalmente, nos diversos casos de violência policial investida contra os homens negros, resultando em mortes injustiçadas: “E você sabe agora, se não sabia antes, que os departamentos de seu país foram munidos da autoridade para destruir seu corpo” (COATES, Kindle: posição 179). A atualidade do genocídio da população negra tem raízes em tempos antigos, nasce junto com o colonialismo e escravidão e desde então nunca mais parou. É algo tão comum que dificilmente o responsável paga pelos seus atos e continua vivendo sua vida em liberdade: “(…) revistas, detenções, espancamentos e humilhações. Tudo isso é comum para pessoas negras. E tudo isso é coisa antiga para pessoas negras. Ninguém é considerado responsável” (COATES, Kindle: posição 184).
Ta-Nehisi Coates, como homem negro e como pai, ao mesmo tempo que quer proteger seu filho, também tem consciência de que não pode fazê-lo. Saber-se um corpo negro, frágil, à mercê das mais diversas violências, resulta em pessoas que cotidianamente vivem com medo e que naturalizam esse sentimento a um ponto de deixá-lo influenciar o modo como se relacionam com suas famílias. A política do medo foi adotada também nos tempos de escravidão, em que as pessoas escravizadas eram moldadas à vontade de seus donos, o que resultou na forma como as famílias negras se relacionavam, incapacitados de demonstrar afeto aos seus, com suas relações baseadas no medo da punição. Bell Hooks diz que “Muitos negros têm passado essa ideia de geração a geração: se nos deixarmos levar e render pelas emoções, estaremos comprometendo nossa sobrevivência”. Ta-Nehisi Coates relata para seu filho:
Meu pai tinha tanto medo. Eu o senti na chicotada de seu cinto de couro preto, que ele aplicativa mais com ansiedade do que com raiva, meu pai que me batia como se alguém pudesse me levar embora, porque era exatamente isso que estava acontecendo por toda parte a nossa volta. Todo mundo tinha, de algum modo, perdido o filho para as ruas, para a prisão, para as drogas, para as armas (COATES, Kindle: posição 244).
Esse relato faz lembrar das muitas famílias que foram insensivelmente separadas durante a escravidão. Além de revelar uma herança herdada dos tempos de cativeiro, o medo de perder o filho faz com que o puna infligindo dor. Em uma tentativa de proteção, é menos pior que essa dor seja causada por algum familiar do que pelo escravizador, do que pelas autoridades, do que pelo mundo fora de casa. A tortura foi utilizada como forma de destruição do negro, individualmente e como grupo, experiência essa que foi passada de geração em geração, com poucas modificações, porque por mais que o período escravocrata tenha acabado legalmente, as suas estruturas se mantiveram de outras formas. Em muitas famílias negras, medo e amor são palavras que andam juntas: “Ríamos, mas sei que tínhamos medo daqueles que mais nos amavam. Nossos pais recorriam ao chicote do mesmo modo que os flageladores, nos anos de peste, recorriam ao flagelo” (COATES, Kindle: posição 264). É um medo que produz violência e alimenta um ciclo.
Percebemos que Ta-Nehisi Coates é um pai que não quer esconder a maldade do mundo de seu filho, isso também é uma forma de proteção: “Eu não quis criar você no medo ou em falsa memória. Não quis que você fosse forçado a mascarar suas alegrias e vendar os olhos. O que eu quis foi que você crescesse consciente. Decidi não esconder nada de você” (COATES, Kindle: posição 1318). De acordo com filósofo camaronês Achille Mbembe, “É uma característica da escravidão ou do colonialismo produzir seres de dor, pessoas cuja vida é constantemente invadida por outros ameaçadores. Uma parte da identidade desses seres é resistir à provação da opressão, de ser constantemente exposto ao querer de Outrem” (MBEMBE, 2017, p.233). Sobre a experiência do que é ser um corpo negro visto pelos olhos de um Outro, Achille Mbembe escreveu: “[…] qualquer corpo, seja ele qual for, nunca é inteiramente determinado por si. É sempre, também, determinado pelo Outro, aquele que o olha, o contempla, e pelas partes do corpo que olhamos ou que damos a ver ou a contemplar” (MBEMBE, 2017, p.231). Assim são determinadas as relações entre brancos e negros. Os primeiros sempre determinando como os segundos devem ser vistos, sempre vendo estes como inferiores: “Nossa história era inferior porque éramos inferiores, o que vale dizer que nossos corpos eram inferiores. E a nossos corpos inferiores não seria possível atribuir o mesmo respeito que se atribuía àqueles que tinham construído o Ocidente” (COATES, Kindle: posição 556). Bell Hooks afirma que “Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade”.
Para tentar fugir desse olhar que inferioriza, que subjuga, Coates explica ao filho que resta ao negro tentar a descorporificação, o que, por si só, já é algo também totalmente violento porque priva a existência em sua plenitude, faz com que os atos sejam pensados antecipando a imagem que o Outro criará. É desumanizante.
Parece otimismo quando Mbembe diz que “A humanidade está em constante criação”:
Mas a vulnerabilidade é também a do sujeito exposto a outras vidas que podem ameaçar a sua. Sem um reconhecimento recíproco desta vulnerabilidade, não há espaço para a solitude e, ainda menos para o cuidado.
Deixar-se afectar-se por outros — ou ser expostos de maneira desarmada a outra vida — é o primeiro passo para esta forma de reconhecimento que não se deixa encerrar nem no paradigma do senhor e do escravo, nem na dialética da impotência e da omnipotência, ou do combate, da vitória e da derrota (MBEMBE, 2017, p.232).
O racismo é um fato demonstrável, que se sustenta em um sistema que almeja destruir os negros, sempre quis, e os usa para sua manutenção. Não tem uma receita pronta de como quebrar esse ciclo de medo e dor, porque não é tão simples, envolveria a completa mudança de uma estrutura que mantém os privilégios de um povo que secularmente detém o poder e não está disposto a abrir mão disso, faz parte do pacto deles. Mas medidas em pequena escala podem ser tomadas, como as que Coates tomou: estudar e aprender sobre a História de seu povo, passar esse conhecimento adiante e tentar quebrar o ciclo de dor e medo dentro do seio familiar, tendo em mente o que Bell Hooks ensina: “O amor cura”.
Referências bibliográficas
COATES, Ta-Nehisi. Entre o mundo e eu. São Paulo: Objetiva, 2015. (Kindle)
HOOKS, Bell. Vivendo de amor. Trad. Maísa Mendonça. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/>. Acesso em 28 mar. 2020.
LUNA, Luedji. Um corpo no mundo. (2016) Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=V-G7LC6QzTA&t=50s >. Acesso em 28 mar. 2020.
MBEMBE, Achille. Esse meio-dia atordoante. In: ______.Políticas da inimizade. Trad. Marta Lança. Portugal: Antígona, 2017.
QUIANGALA. Anne Caroline.Ta-Nehisi Coates: o homem por trás do Pantera Negra!. Preta Nerd e Burning Hell, 2018. Disponível em: <http://www.pretaenerd.com.br/2018/02/tanehisicoates.html>. Acesso em 28 mar. 2020.