“Garota Exemplar” (2014)
Garota Exemplar. Direção: David Fincher. País de Origem: Estados Unidos, 2014.
No cinema de David Fincher, o jogo entre aparência e realidade esconde subterrâneos que estão para além de uma verdade encoberta. Os roteiros que Fincher leva às telas são perspicazes exames do comportamento humano, daquilo que está oculto em uma ação/acontecimento que movimenta aflições, dúvidas, precipitações, e, principalmente, dilemas. Como se não bastasse, a manipulação é um elemento decisivo. Há sempre alguém que controla as cordas e provoca a criação de um inferno particular que conduzirá as personagens a situações-limite, obrigando-as a montar quebra-cabeças e tangenciar as descobertas desse “mergulho” na profundeza de suas próprias emoções.
Se em Seven – Os Sete Crimes Capitais (1995) temos um psicopata que, a partir dos ensinamentos da Igreja Católica Romana sobre os pecados, arma um terrível jogo para completar uma suposta missão de purificação da sociedade, em Os Homens Que Não Amavam as Mulheres (2011) encontramos segredos de família que dissimulam a existência de um criminoso sexual. Desse modo, podemos inferir que a força-motriz dos filmes de Fincher é a fascinação pelo ardil. Assim, o diretor estadunidense entrega ao público sinais de que algo nunca é o que aparenta ser, e cada frame dos filmes pode ou não corresponder às expectativas do espectador. Nas linhas de suspensão que vai tecendo, Fincher captura a atenção e engendra mistérios que percorrem a tênue distinção entre o desafio e a obsessão.
Em Garota Exemplar (2014) – produção pela qual Fincher recebeu uma indicação ao Globo de Ouro 2015 de melhor direção–, as principais características do cineasta, que deu ao mundo cinematográfico Clube da Luta (1999), estão presentes, funcionando com eficácia e elevando a tensão ao máximo. O roteiro intricado e o domínio do universo fílmico que constrói fazem surgir inúmeras dúvidas sobre o relacionamento do casal Dunne: Amy (em uma interpretação magistral de Rosamund Pike, indicada ao Oscar 2015 de melhor atriz) e Nick (Ben Affleck, que está convincente em seu papel). A partir da adaptação realizada pela escritora Gillian Flynn, que segue à risca seu best-seller (que chegou ao leitor brasileiro pelas mãos da editora Intrínseca), David Fincher promove uma devassa na sociedade contemporânea, tendo como ponto de partida o desaparecimento de Amy, no dia em que completaria cinco anos de união conjugal com Nick. No entanto, a felicidade que o casamento parecia conter ganha contornos sombrios com o avanço da investigação policial. Nick começa a ser desenhado como uma machista inveterado, infiel e agressivo, e Amy mostrada como a garota adorável, de sucesso e prisioneira em uma relação abusiva. Fincher apresenta justamente esses aspectos de seus personagens centrais, que os aproxima do clichê do casal americano imerso em uma crise marital, cujo afeto é devorado gradualmente pela incompreensão e rispidez, para gerar a ambientação ideal e efetivar a desconstrução da imagem de felicidade da relação. Máscaras, desconfianças, evidências, nuances de personalidade: tudo rui ou vem à tona freneticamente (este é mais um ponto positivo da produção, e um elemento seminal das obras de Fincher, uma abordagem narrativa que concilia inquietação e sobriedade – ainda que flerte o tempo inteiro com perversões que assombram o cotidiano. Assim como sua capacidade de cadenciar – sem tornar a película insossa ou tediosa – ou acelerar – sem cair em maneirismos – o ritmo do filme).
Auxiliado pela fotografia de Jeff Cronenweth – parceiro de Fincher em A Rede Social (2010) –, que reforça os detalhes sombrios da trama utilizando tons escuros e captando com precisão uma ideia de distanciamento, o roteiro desenvolve as lacunas a respeito do desaparecimento de Amy, sem nunca descuidar das possibilidades que um thriller pode alcançar, e injeta uma crítica ácida ao sensacionalismo midiático e ao modo como nos deixamos capturar pelos casos eleitos pelos meios de comunicação como merecedores de suscitar revolta. Em uma civilização em que a capacidade de simular inocência é mais importante que a inocência em si, a ambiguidade das personagens é um prato cheio para a exploração de suas vidas em nome do entretenimento descartável, mas que arruína reputações. Cinismo, dualidade e ilusão integram a vida de Amy e Nick, e a voracidade da imprensa não permite que esses componentes escapem, passando a atropelar as provas e fazendo do estúdio televisivo tribunal do júri.
A não linearidade narrativa, dividindo-se em presente (o calvário de Nick após o sumiço da esposa) e o passado (revelando a convivência do casal pelo diário de Amy), contribui para a guinada a 360º que o texto realiza. E as reviravoltas fincherianas não são meros movimentos que acionam um choque ou a sensação de engano que pode tomar conta do espectador, mas a complementação do jogo encenado, um tour de force pelos meandros de uma operação manipulatória (vide Seven e Vidas em Jogo [1997]), o que confirma o absoluto poder de ordens técnica e emocional exposto pelo diretor de Zodíaco (2007).
A construção e desconstrução da aparência de felicidade, em uma sociedade individualista, desafeita à empatia e moldada para as realizações pessoais, conduzida por Fincher em Garota Exemplar, trazem os descaminhos de um mundo de apego aos supostos benefícios de uma vida talhada para ser perfeita. E nesse desencontro de expectativas, quem deve se submeter para que a relação entre nos eixos? Questões sobre o casamento atuam para elaborar as camadas que preenchem o décimo longa-metragem de David Fincher.
E a predileção do diretor pelos desdobramentos derivados da manipulação, posta em prática com rigor, funciona com exatidão em Garota Exemplar graças à composição de Rosamund Pike para sua Amy, pois, de beleza glacial, mas com uma sensualidade latente, a atriz revela estratos de sua personagem que iluminam, contradizendo ou reafirmando, os indícios de algo que supera os dramas de um matrimônio e que, ao mesmo tempo, não existiriam sem ele.
*Publicado originalmente por Wuldson Marcelo em Obvious Magazine