Grafias da linguagem sociocósmica – Por Michel Yakini
A Coluna Michel Yakini apresenta crônicas, contos e poemas deste autor paulistano, atuante no movimento literário das periferias de SP.
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Grafias da linguagem sociocósmica
A gente tava trocando figurinhas cibernéticas aqui em casa e a Amanda me mostrou uma propaganda curiosa. Uma marca anunciava que ao beber sua cerveja, ou qualquer outra, ouvindo um som na frequência de 73 hertz o gosto da bebida ficava mais amargo.
Conforme a Escala de Hawkins cada pessoa percebe a realidade de acordo com seu nível de consciência e esse nível depende das ideias, emoções, ações e vibrações cultivadas. Hawkins criou uma tabela, onde cada emoção corresponde a um estado de consciência e esse estado é definido por um valor vibracional de energia que pode ir de 20 a 1000 hz. Neste caso, quanto mais baixa a frequência, mais densos são os sentimentos e 73hz corresponde ao nível de consciência da tristeza, do arrependimento, da visão trágica da vida, do desrespeito a visão divina e ao desânimo.
Essa estratégia de baixar a frequência das transmissões é aplicada a rodo nas mídias, com trilhas e notícias que alteram a percepção sensorial e as emoções. E se a atenção não estiver plena pra cancelar esse abismo a tendência é manter essa densidade até adoecer, sem nem mesmo perceber a origem do lance.
Tive essa percepção durante um programa que eu assistia sobre o assassinato do cineasta negro Cadu Barcellos. Enquanto a notícia era dita, meu corpo ficou tenso e a boca amargou. Eu vi esse programa no 20 de novembro, dia de Zumbi do Palmares, que esse ano ficou marcado pelo assassinato de João Freitas numa loja do Carrefour em Porto Alegre. Tudo ficou mais amargo quando lembrei que em maio de 2019, eu mesmo fui acusado de roubo no Carrefour de Pirituba, ao ir trocar um presente da minha mãe.
Quando isso aconteceu a Amanda também estava e enquanto ela passava as nossas compras no caixa, eu fui até o balcão de atendimento. Eu estava com a peça comprada e com outra que eu havia escolhido pra troca. Quando comecei a conversar com a balconista um segurança se aproximou e falou rispidamente que a câmera flagrou eu pegando uma mercadoria. Ele tentou me arrastar e aí falei bem alto que não iria a lugar algum e que ele poderia dizer ali mesmo.
Depois avisei a Amanda, falando alto, que estavam me acusando de roubo. A gerente se aproximou, e eu disse “você é negra, nós também e você sabe o que está rolando aqui”. Citei um caso de 2009 da loja de Osasco, onde um homem negro chamado Januário Santana foi agredido e acusado de roubar o próprio carro. Ela se desculpou, pediu pro segurança se afastar, concordou que a empresa não fazia uma preparação adequada dos funcionários, mas disse que o caso de Osasco não tinha nada a ver. O tempo mostrou que não.
Ficou por isso mesmo, fiquei paralisado. Depois de um respiro percebi que se eu tivesse feito algum barulho, capaz que a culpa ficaria concentrada no segurança ou na gerente que também eram negros ou então poderia gerar uma discussão desmedida e sabe-se lá o que aconteceria, mas apesar de passar batido eu não superei essa parada, tanto que essa frequência ainda me rondou com as histórias do Cadu, do João e do Januário.
Na época, o Sr. Exú falou que essa turbulência havia acontecido por conta de um conflito no plano espiritual, pois alguns obsessores se sentiram desafiados por eu estar acolhendo uma pessoa na minha casa que passava por uma situação de violência e eles não aprovaram esse amparo. Tive dificuldade de olhar por esse prisma, mas agora que estamos todos bem consegui conceber melhor. O Sr. Exú não ficou argumentando se houve ou não houve racismo na minha história, na verdade nem falou disso, mas me deu a oportunidade de olhar os fatos pelo viés da energia, do campo cósmico, da possibilidade complementar.
Uma parada não anula a outra, é encruza mesmo. Às vezes a gente tem consciência social, sabe de um par de teorias, mas não tem saúde emocional pra lidar com certas situações, mesmo cuidando da parte energética, pois é sempre um choque. A espiritualidade não blinda ninguém a ponto de nunca mais sentir medo, desconfiança, inseguranças, desencantamento e todos esses sentimentos indigestos, pois essa variação faz parte da existência terrena.
Ser espiritualista também não significa que uma pessoa fica imune de ser homofóbico, racista, machista etc, assim como um bom discernimento social alinhado ao desprezo do corpo energético, é como sair correndo numa estrada coberta de lodo.
O professor Gersem Baniwa atenta que é importante considerar a comunicação sóciocósmica, onde o material e o invisível, o humano e a natureza, não são excludentes, nem tem separação rígida. No artigo “Língua, educação e interculturalidade na perspectiva indígena” o professor ensina que “segundo a cosmologia Baniwa, o mundo é resultado de um protocolo de comunicação entre todos os seres, criadores e criaturas, cuja linguagem mais proeminente é a de símbolos ou sinais (fenômenos) (…) A natureza sempre se manifesta por sinais e por eventos, que aos sábios pajés cabe interpretá-los, revelá-los e manejá-los”, mas completa que “essa comunicação com o universo não é exclusividade dos pajés. Todos os humanos, segundo as cosmologias indígenas, devem permanentemente manter essa comunicação” por isso a “escassez de caça, por exemplo, pode ser resultado de uma falta ou uma ineficiência de comunicação entre os pajés e os espíritos superiores (…)”.
Assim, entendi que a compreensão de situações amargas como o gosto da cerveja, ou de uma tiração racista ou de outros desacertos, podem ter uma perspectiva pra além do fator social, sem excluir essa verdade, pois ambas as perspectivas existem. Já tá escancarado que vivemos num mundo desigual, violento, manipulador e segregacionista, mas as vibrações, visíveis e invisíveis, que somos expostos diariamente por meio da TV, rádio, internet, antenas, alimentação, cosméticos, bebidas etc., são estruturas que mantém nossa consciência em um estado de densidade tão forte e isso também é determinante pra bloquear nossa capacidade de criar de outras realidades. É preciso considerar.