“Hic” (2017) – Por Wuldson Marcelo
Hic. Direção: Alexander S. Buck. País de Origem: Brasil, 2017.
Experimentalismo, inventividade e rigor técnico marcam Hic, curta-metragem de ficção de Alexander S. Buck. Em pouco mais de 14 minutos, realismo fantástico, efeitos visuais e racismo se cruzam para contar um inusitado fenômeno que acomete o maratonista africano Wandijiru Kebebe, interpretado por Billih Bantu.
Kebebe, logo após vencer a 13ª maratona de Vitória, capital do Espírito Santo, começa a sofrer de uma crise de soluços (daí a onomatopeia hic, que dá título ao curta), que o teletransporta para locais distintos dentro da Ilha. Nesse sentido, o território se torna história e mundo, e cada soluço nos mostra como o racismo está entranhado na sociedade contemporânea. Kebebe nos leva a testemunhar como o preconceito racial está presente nas famílias, nas empresas, nas instituições, como a polícia, etc.
No início, vemos uma mãe e filho caminhando em um chão maltratado, árido, construindo uma similaridade entre ausências, crueldades e desigualdades vividas entre África e Brasil. O terreno em que a mulher e a criança pisam é um campo minado. Há uma explosão, e as guerras tribais que alimentaram o colonialismo europeu na África vem à mente. Em seguida, a maratona, vista, em princípio, a partir de uma câmera subjetiva. Então nos é apresentado o fenômeno de teletransporte que assola Kebebe.
O que parece aleatório, as viagens do atleta pelos mais diversos lugares de Vitória, ganha aos poucos seu conteúdo político, a visão do racismo em um país que se julga fraterno e tolerante, considerado uma democracia racial, mas que a aproximação do negro dos espaços de poder e seu cotidiano nas periferias desmascaram uma realidade bem distinta aos dos discursos celebratórios da harmonia racial e do processo de miscigenação estável.
Hic, além do seu roteiro repleto de referências, tem em sua montagem um dos seus triunfos. Desde os closes que nos mergulham na angústia de Kebebe – cuja carga dramática alcança um nível de convencimento exemplar do conjunto corpo-rosto de Billih Bantu – à narrativa que se apresenta fragmentada, que se erige com imagens que retornam para nos espantar com o discriminação racial e suas “sutilezas”.
A forma como as cenas presenciadas por Kebebe nos primeiros minutos do curta-metragem recebem um significado em um seu final concentra o que há de mais potente na trama criada por Alexander S. Buck, jogando com a atenção e a imaginação do espectador e desvelando o racismo. Além disso, ainda há toda a comoção internacional causada pelo fenômeno. Em um tempo midiático, em que celulares transmitem em tempo real um acontecimento, a situação inusitada do maratonista torna-se um desafio para a ciência e um prato cheio para os curiosos, que, na verdade, pouco se importam com o drama humano, já que o sujeito dessa curiosidade é desumanizado justamente por essa indiscrição. Desumanização ampliada pela incompreensão e pelo racismo.
Apesar do sofrimento em que Kebebe é arremessado, Hic trata de empoderamento, de uma transformação, pois é um conto de Ori, o Orixá pessoal, aquele que reside dentro de nós. Em Yorubá (idioma da família linguística nigero-congolesa), Ori significa cabeça. Diz o provérbio, “A cabeça de uma pessoa faz dela um rei”. Destino, grandeza, felicidade são elementos que o compõem. Há em Hic, em última instância, um apelo à transcendência, em que se sai de um campo minado – que também é o meio social, a sociedade – para a afirmação/reafirmação da ancestralidade, que é um passo para o futuro, para a realização.
Hic é um filme fantástico e político, é crítica social e entretenimento, carregado de simbolismo, mas explícito em relação às suas intenções.
* Texto escrito a partir da programação (mostra competitiva) da 3ª Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, em Cuiabá (MT), ocorrida no período de 09 a 11 de novembro de 2018.
lucas
Parabéns e obrigado pelo trabalho !