“Infiltrado na Klan” (2018)
Infiltrado na Klan. Direção: Spike Lee. País de Origem: Estados Unidos, 2018.
Alerta! Contém spoilers!
Ao final de Infiltrado na Klan, soltam aos olhos duas das maiores habilidades de Spike Lee, que são a de trabalhar, em sua narrativa, questões sociais com um humor cortante e a mudança de tom, embaralhando os gêneros cinematográficos, que ocorre de maneira natural. Faça a Coisa Certa (1989) é o melhor exemplo. Uma aparente comédia sobre o caldeirão étnico-cultural que é Nova Iorque se transforma em uma tragédia urbana, expondo com contundência a intolerância e o racismo.
Inspirado, e tomando muitas liberdades, na autobiografia do policial negro de Colorado Springs Ron Stallworth, que, em 1978, conseguiu se tornar membro da Ku Klux Klan da cidade, Infiltrado na Klan se inspira – e homenageia – no blaxploitation / blacksploitation (movimento estadunidense surgido nos anos 1970 em que obras fílmicas eram produzidas, realizadas e protagonizadas por profissionais negros), lança mão de críticas mordazes a O Nascimento de uma Nação (1915), o controverso – e racista – clássico de D. W. Griffith e investe no absurdo e na veemência política para traçar paralelos com a América atual, 40 anos após a façanha de Stallworth.
Stallworth é um jovem entusiasmado e que tem a pretensão de trabalhar disfarçado. Aspiração e ambição que podem parecer inconcebível para um policial negro, o primeiro do estado do Colorado. Porém, Ron tem confiança de sobra, e a entrevista com o chefe de polícia Bridges revela a sua disposição e firmeza de caráter. John David Washington, que interpreta Stallworth, apresenta-nos esse idealista, que deseja conciliar comunidade e segurança, isto é, trabalhar para uma corporação que é o braço repressivo do racismo institucional, mas fazer a diferença, para que a violência deixasse de ser uma realidade nos bairros negros. Apesar disso, o novato do Departamento de Colorado Springs pouco conhece dos meandros do conflito racial, que culmina na violência do Estado contra a população afro-americana.
O primeiro teste para Stallworth é se infiltrar em uma reunião organizado pela Black Student Union com o ativista e ex-Pantera Negra Kwame Ture. A cena é um tour de force de Spike Lee, que destaca o discurso engajado, de afirmação de Ture e os rostos na plateia ao mesmo tempo que cria uma atmosfera tensa e o limiar do despertar da consciência de Ron. Ainda que as falas potentes do ativista reverberem, ele ainda é um agente da lei e precisa cumprir sua missão. Para isso, aproxima-se de Patrice Dumas (Laura Harrier), que, nessa mesma noite, relata a Ron ter sofrido, junto com Ture e outros membros da Black Student Union, uma abordagem policial abusiva, com muito desrespeito e intimidação. E mais um alerta soa para Stallworth. Ele é o good cop, mas precisa encenar, enganar. Logo, infiltrar-se é jogar com a mentira. É compor propositadamente uma traição por um “bem maior”.
Essa é a preparação para esse homem que pretender fazer algo pela sua comunidade – no auge das lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos. Ao se deparar com a descoberta de uma célula da Ku Klux Klan em Colorado, Stallworth não pensa duas vezes em entrar em contato pelo telefone indicado em um anúncio, fingindo ser um cidadão branco indignado com a derrocada da América por causa dos negros e toda sorte de imigrantes, o policial inicia uma relação com alguns membros da Klan.
Ron consegue, começando a vencer a hostilidade da força policial que integra, permissão para investigar o grupo da KKK. Neste momento, o filme de Spike Lee ganha reforço na dualidade que explora, do quanto estamos afastados da identidade que nos constitui ou deveria constituir. Sendo um homem negro, Stallworth não pode encontrar pessoalmente os intermediários e a liderança da Klan. Para interpretar esse personagem, surge o policial judeu Flip Zimmerman (Adam Driver, indicado ao Oscar 2019 de Melhor Ator Coadjuvante). O detalhe sobre Zimmerman é que ele é um judeu não praticante, que, pela missão que assume, acaba por se reconectar com a sua origem diante de pessoas que desprezam a sua ascendência.
Há um peso psicológico, que o cineasta nunca perder de vista, no fato desses homens se disfarçarem. Stallworth, que ainda flerta com a leveza graças aos momentos de divertimento e o romance com Patrice, simula para a comunidade que quer proteger, escondendo o fato de pertencer a polícia que agride e reprimi violentamente seus irmãos. Ron cria uma persona da qual não poderá fugir, já que sua inconsciência inicial é dinamitada pelo crescente perigo de um atentado dos supremacistas brancos na cidade e de sua inserção no movimento negro.
Situação mais complicada vive Zimmerman, que lida diretamente com a organização, pois assume ser a face e o corpo de Ron, que é uma fantasia das mais arriscadas. A desconfiança não tarda a acompanhá-lo, com a sua origem judaica passando a ser um fator de risco e culpa, por Flip estar em um ambiente antissemita até os ossos.
Os momentos mais bem-humorados e tensos surgem da conversa entre Ron e o líder nacional da KKK, David Duke (Topher Grace). Ron despeja todos os códigos racistas, exibindo domínio sobre o repertório de um supremacista ao revelar uma revolta pela presença dos negros na América, enquanto Duke sente-se à vontade para exortar um homem que reconhece como igual a retomar seu país usurpado por “pessoas inferiores”. Lee cria um efeito cômico em cada conversa, porém não deixa de ser assustador, ainda mais por Topher Grace evitar flertar com a caricatura, revelando um Duke com suas convicções e inspirações.
Deve-se destacar a intercalação entre um depoimento de um ativista negro (o grande Harry Belafonte) a respeito de um linchamento público e uma reunião da Ku Klux Klan, em que se exibi O Nascimento de uma Nação para um público eufórico, que delira com cada “justiçamento”.
Esse paralelo comprova como a montagem de Barry Alexander Brown conduz a história com dinamismo e fluidez, pois que, apesar do teor político carregado (sempre em função da narrativa), Infiltrado na Klan é um entretenimento envolvente e que chega ao ponto desejado, que é o da reflexão. A fotografia de Chayse Irvin também é destaque, alcançando o clima e as cores dos anos 1970, além de contribuir para o clímax do filme.
Spike Lee alcança o equilíbrio perfeito entre o humor e o drama em sua denúncia do racismo estrutural nos Estados Unidos. Se sabemos que Spike é um proeminente ativista da causa negra e dos direitos humanos, e seus filmes podem até ser acusados de panfletários e muito direitos em alguns dos seus temas, seu discurso em Infiltrado na Klan é exato ao tratar e confrontar o racismo e os preconceitos como construções históricas, que acabam assumidas por pessoas que resistem às transformações sociais e se apegam à brutalidade para defender seu modo de vida.
Há uma dinâmica de incitação ao ódio, Lee nos mostra como a política e a consciência racial/social empoderam e são as melhores formas de combatê-la. É necessário estar alerta, já que, se O Nascimento de uma Nação significou exortar indivíduos com ideias racistas a saírem das sombras, os discursos xenófobos de Donald Trump mantêm vivos a face mais violenta da América, que culmina em casos de perseguição a imigrantes, racismo e antissemitismo. Spike Lee traz o incidente em Charlottesville, em 2017, que custou a vida da ativista Heather Heyer, atropelada por um neonazista, que jogou seu automóvel contra a multidão de manifestantes, para mostrar ao espectador que os ideias racistas perduram, o ódio é algo vivo e que continua (continuará) a fazer vítimas.
Ainda que Ron e Flip consigam seu objetivo, o de desmantelar a célula da maior organização racista em sua cidade – com um final irônico, que é patético e tenso, mostrando como o ódio pode tornar vítima aquele que o espalha ou o propaga –, a vigilância é a força-motriz do ativismo e da solidariedade.
Infiltrado na Klan joga com o sombrio e com o hilário, revelando os mecanismos de uma cultura de opressão e os levantes que são essenciais para superá-la. Spike Lee acerta todos os pontos, arte e entretenimento, política e técnica, nesta história que poderia ser inventada – um roteiro original –, entretanto, é um capítulo da história dos Estados Unidos, reunindo passado, presente e refletindo sobre o futuro, que diz respeito ao mundo, já que a intolerância persiste em reaparecer ou deixar a cena, principalmente em momentos de crise, procurando alguém para culpar, sejam imigrantes, minorias religiosas, populações marginalizadas ou de sexualidade não normativa.