Um conto de Ivan Nery Cardoso
Ivan Nery Cardoso nasceu em São Paulo no ano de 1991. É escritor e tradutor, pós-graduado em Escrita Criativa pelo Instituto Vera Cruz. Em 2016 lançou em co-autoria a coletânea de textos curtos Elaborações Sobre Nada e Coisa Nenhuma. É co-criador e editor da seção de literatura do site Porco Espinho (www.porcoespinho.com.br). Publica breves ficções no Medium (medium.com/@ivannerycardoso).
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O último degrau
Descendo mais quinze degraus, você encontra o fim da fila. Parece o fim da fila, pelo menos, e você prefere se certificar: esse é o fim da fila? Esse é o fim da fila, sim. Quem te responde é uma senhorinha que ocupa dois degraus: o pé esquerdo no de cima, o pé direito no de baixo. É o fim da fila, sim, ela diz, olhando para baixo, onde a fila se estende até fazer uma curva e sumir atrás da parede. Depois olha para cima e confirma que a fila agora termina com você. Ela se ajeita, troca os pés de degraus, se vira completamente na sua direção e pergunta: Como está lá em cima? Você responde que está vazio. Pelo menos estava vazio quando saiu. Então é pra lá que que eu vou, ela diz, e se junta ao fluxo esporádico de pessoas subindo. Uma, duas, três pessoas subindo.
Você espera paciente no fim da fila, e não demora para todo mundo descer dois degraus. Pelo menos ela anda, você pensa, descendo os dois degraus e reparando que a garota com roupas de crossfit à sua frente deve estar com a perna direita machucada, pois desce pulando só com a esquerda e se apoia no corrimão o tempo todo. Alguém cutuca seu ombro, é um homem de chapéu: esse é o fim da fila? Esse é o fim da fila, sim, você responde, e percebe que atrás de você já estão mais duas pessoas, responsáveis agora pelo fim da fila. Você agora faz parte do corpo da fila, um dos muitos elos entre o começo e o fim. A ideia pesa nos seus ombros. O fluxo de pessoas subindo parece muito mais convidativo. Promessa de movimento. Você conta cinco pessoas subindo. A garota com roupas de crossfit já saiu da fila, desistiu, está subindo, subiu mancando e já desapareceu. Tão rápido. Você desce mais dois degraus.
O homem de chapéu cutuca seu ombro de novo: escuta, onde é que vai dar essa fila? Ora, como assim aonde é que vai dar a fila?, você rebate. É, o que tem lá na frente? Você ri dele e cutuca o ombro da mulher com uma criança de colo à sua frente: esse aqui não sabe aonde vai dar a fila. Não sabe onde vai dar a fila? É, não sabe! Ela, um pouco rindo, um pouco séria, cutuca o ombro da figura encapuzada na frente dela: ei, psiu, onde é que vai dar a fila? A figura encapuzada dá de ombros, cutuca o ombro do anão à sua frente: onde é que vai dar a fila, hein? O anão faz cara de dúvida e cutuca a moça que assoa o nariz: deixa eu te perguntar, a fila vai dar aonde, hein? A moça vira para a pessoa da frente e faz uma pergunta, mas ninguém sabe o que diz, porque a escada faz uma curva ali na frente e já não se vê nada além do fluxo constante de pessoas subindo. Você conta sete pessoas e desce mais dois degraus.
O silêncio na escada é imenso, um pouco constrangedor. Você olha para trás e vê que a fila já está virando a esquina ali em cima também, desaparecendo atrás da parede. Você desce dois degraus. Talvez chegue no fim logo, logo. Conta oito pessoas subindo.
Um zumzumzum começa a subir, você vê a moça que assoa o nariz falando alguma coisa para o anão, o anão falando alguma coisa para a figura encapuzada, a figura encapuzada falando alguma coisa para a mulher com a criança de colo, a mulher com a criança de colo te falando, num cochicho: no fim da fila tem o último degrau. O último degrau? O último degrau! Meu deus… Você conta doze pessoas subindo. O homem de chapéu atrás de você está curioso, quer saber o motivo do cochicho. Você se aproxima e passa a informação: o último degrau. O que tem o último degrau? É onde a fila vai dar, oras! O homem de chapéu parece confuso. Sobem mais quatro pessoas. Não, não, o último degrau fica lá em cima. É claro que não fica! Ele se vira para o jovem com espinhas atrás dele: nós não viemos lá do último degrau, lá em cima? O jovem concorda, diz que sim e faz joinha com as mãos. Lá embaixo deve ser o primeiro degrau, diz o homem de chapéu. Você fala isso para a mulher com a criança de colo, que diz para a figura encapuzada, que diz para o anão, que diz para a moça que já não se vê mais, pois todos já desceram mais dois degraus.
Não demora para o fluxo de pessoas subindo aumentar consideravelmente. Vinte, quarenta, oitenta. Um monte de gente cansada, indignada, subindo. Você pergunta o que foi, e o anão te responde: essa é a fila errada, lá embaixo fica o primeiro degrau. O primeiro degrau? É, o último fica lá em cima. O homem de chapéu ri da sua cara. Você percebe seu erro e se junta ao fluxo de pessoas subindo, degrau depois de degrau. Atrás de você estão a moça que assoa o nariz, a figura encapuzada, a moça com a criança de colo, uma mulher com oito colares e um homem vestindo uma túnica de bispo. Vocês todos em movimento constante, parte do fluxo que sobe. São pelo menos cinquenta degraus, duas curvas, e já param de novo, pois se formou outra fila para continuar subindo. O anão está à sua frente, e à frente dele há uma pessoa fantasiada de dálmata. Você espera, sobre dois degraus, espera, sobe dois degraus e espera mais uma vez. Você conta: uma, duas, três pessoas descendo.