Um conto de João Henrique Balbinot
João Henrique Balbinot, nascido em 1989, paranaense de interior, gosta de viver rodeado de músicas, palavras e pessoas. Quase sempre. Além de escritor, é também psicólogo. Como autor, publicou os livros de contos No arco-íris do esquecimento (Ed. Multifoco, 2012) e Permeabilidades do Intransponível (Ed. Patuá, 2016), e também os livros de poesias Pequenezas e outras infinitudes (Ed. Multifoco, 2014) e O medo de tocar o medo (Ed. Patuá, 2018).
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Formas, cores e nuances
Alguns botões caídos e o abotoar torto da camisa flanelada, suja e encardida de sangue seco e restos de comida, farelos, da última refeição que já nem me lembro de ter feito. Cueca furada e um par de tênis inconsolavelmente desamarrados. Pares de meias que não se encontram jogadas ao chão. E também eu, lesma sem casulo em um caminhar lento e viscoso aonde as partes de mim vão ficando com o rastro que dolorosamente deixo. Pelos cantos, cartelas de comprimidos vazias, papéis amassados e moedas – todas dívidas não pagas e com todo o custo e energia postergadas, até um novo apagar… Em cima do armário, pílulas e comprimidos esquecidos atrás da vodca e antes da imagem de Nossa senhora em um altar de antigas novidades: relicários ocos e preces esquecidas. Quase sempre eu ganho o formato destas pílulas perdidas, um invólucro gelatinoso, cindido ao meio, que traz apenas pó dentro de si. Pó imundo, ainda que branco. Cristais de nada – perdidos e perdurados – no acaso preciso, ainda que irônico, dos flocos de neve.
Eternamente ressacado, ingiro um punhado de comprimidos acompanhados do último gole da vodca, limpo o canto da boca com a manga da blusa. Então ele faz uma carreira com o pó que tira da cápsula vermelha e bege. Inala em um único súbito. Anda cambaleante e faço o sinal da cruz para minha Nossa Senhora e seu menino Jesus. Dorme, menino, dorme. Se não a Cuca te pega, Judas te trai e Pedro te nega. Três vezes em uma mesma noite errante. Jogo a garrafa que ao se chocar com a parede se estilhaça e penetra em meus sulcos sem nem ao menos me fazer sangrar.
Vou inflando até que a costura da camisa começa a se desfazer, o elástico da cueca laceia, mas, pesado, não consigo nem sair do chão… vou ganhando volume e também densidade e, em um espirro, tiro todo aquele peso de dentro de mim, perco forma, me faço flácido, perdido nos meios das minhas roupas como um rato medroso que por pura ansiedade começa a roer as redes do tecido.
À parte de tudo, a vida tem um cheiro incorruptível e contínuo. Por mais que eu disfarce, álcool a granel, enxaguante bucal, espuma de barbear, pós-barba, perfumes e desodorantes, esse cheiro sobressai, impregna tudo e a tudo corrompe. Esse cheiro me confunde, me inebria e, sinto, pouco a pouco me mata. Esse cheiro sou eu bêbado, cheirado, fumado, dopado e inervado de todas as minhas outras adicções que ainda vive em meio à matéria morta em ligeira decomposição. A podridão só faz atrair outras formas de sujeira, e ele vou sendo partilhado por formigas, vermes e também baratas que em êxtase se esbaldam e se refestelam em mim, de mim.
Eu me liquidava. Eu me liquidificava. Liquidificavam em mim. E, como um precipitado, eu ia surgindo novamente dentro daquele poço fétido todo, mudando os limites, mudando os contornos. Nesses dias, ninguém me reconhece. Por dentro, águas revoltas. Por fora, a mesma cara de casca de sempre. Ainda que diferente. Tipo hoje.
Para diferenciar o que vai dentro do mundo e o que vai dentro do meu coração, vai tempo. Assim como é difícil falar o que está de fato dentro do ouvido e o que está dentro de casa. Na bancada se vê discos riscados órfãos de capa, livros riscados cheios de traça, copos, cinzeiros, cinzas e sujeiras outras. Tudo organizado em uma cuja ordem que, precisa, tem a lógica negada para vocês. Pego rápido o headphone e o coloco em meus ouvidos. Procuro o lugar certo para lhe plugar ao som. Tento com essa tecnologia eliminar os ruídos que me assustam e me desestabilizam. Inútil, os barulhos já haviam se instalado antes nas voltas dos meus ouvidos. Hesito. Por mais que a música esteja alta, as perturbações se fazem audíveis. Então tremulo. Criança sem chupeta ou embalo, choro.
É tudo tão complicado para ele que incorrigivelmente chora. Por que, Maria? Por que você segura esse menino rosado e gordo em seus braços e nega carinho e olhar para esse seu filho aqui muito mais necessitado? Meu cabelo não tem cachos tão bonitos, e minha pele calejada não parece em nada com um pêssego, mas eu saí das suas entranhas, Maria, do seu sangue e gosma. As minhas vísceras e demais porquidões também são suas. Não faz essa cara cândida, Maria, que eu acabo desacreditando de você. Quero colo, Mãe, você deve isso a mim. Sem perguntas, ou propósitos, me nine. Se possível, nunca mais me acorde.
Eu sou o olho, e também a fechadura por onde a fina luz passa e o tosco olhar vê. Como um olho de vidro trincado, ele se põe a olhar, ou tenta com vivacidade, sem conseguir, pois frio e quebrado que é, não me sobra mais do que esse olhar gelado que não vê um palmo frente ao nariz que teria se assim fosse como um rosto. Contudo, não o sou, e permaneço deste modo, um total de objetos parciais onde se desencontram impulsos, estímulos e sensações. Desesperadamente olho por entre este buraco. Perdidas as chaves e dobradiças, é apenas isso que me resta. Fico aqui como que do lado de fora de uma tumba e sei que ali dentro o corpo que vai sendo velado, esquecido de rituais, é o meu. Sem salvação, ou salvador, desfaleço.
Transmuto. Rolo para um lado, rolo para o outro. Como uma capa cheia de babados, caio do sofá para todos os lados. Assustado, me levanto. O respirar fundo de quem acaba de emergir, depois de muito tempo, das mais profundas águas. A imagem cheia de ruídos sou eu cheio de charcos. Atravessado por mísseis. Vazado de átomos. Se não me cuido e descuidam de mim, eu vazo pelos poros e bordas. Então paro. Cara-a-cara com o penhasco. Mais uma vez. Eu abismal. Ele abismo. Nós absurdos. Absurdados. Eu. Tu. Ele. Nós. Vós. Eles. Justaposições. Simultaneidades. Eu não tenho certeza donde eles estamos. Desesperado, me ponho a conjugar verbos, repetir ordens numéricas e a roer as unhas de todos os meus dedos e todas as minhas mãos, mas então meu braço enrijece, perco os cotovelos, e saio como um primitivo arrastando as mãos pelo chão, enquanto que com um pé eu coço a cabeça.
Cadê você, menino Jesus? Onde estiver, me espere, eu estou como um toco de árvore preso nesse chão, mas preciso de você como meu redentor. Perdoe, irmão, se dessa santíssima trindade eu faço como que o quinto elemento, mas eu já estou, involuntariamente vim ao mundo. Você também me deve colo e aconchego. Bebo no cálice de vinho seu sangue que derramo goela abaixo e, acima de mim, viro o bocal do garrafão e me banho nesse mar quase vermelho. Minhas raízes secam nesse árido chão. Minhas folhas, já secas, presas ao tronco que há muito fora deitado, vez ou outra se movimentam, vez ou outra se desprendem dos galhos e se lançam em um balé aéreo cujo o passo é um único movimento vazio e despreparado. Bebo este sangue por ser impenetrável. Por ser seco. Por ser estéril. Perdoa, Irmão, mas esse chão em que me encerro nem com seu sangue, nem com o sorver do meu sêmen consegue germinar. Da terra que dizem termos vindo só sobrou a erosão.
Oh, Pai, por que me abandonaste? Eu, cheio de chagas, também sou o sagrado coração que hipertenso bate quase a ponto de explodir. Ele olha pro espelho onde se projeta, como tela de cinema, os mais cruéis instantes que se vive e não se deixa morrer. Pego a caixa de fósforos e risco um a um. Até o toco do palito e o calejar dos meus dedos. Muito mais encrudescido vou indo entre as farpas e forças, e em linha reta me perco de novo, me sugo pra dentro e caio no ralo de mim. Umas partes incertas não se vão, presas nos cabelos e fiapos, me entopem. Aí a sobrevida.
O calendário riscado, cheio de polígonos e setas que não dão a lugar algum, me leva para longe. Rostos amorfos, pelúcias dentadas, bonecos trincados – talvez todo este lixo seja apenas um parte de mim. Talvez o lixo seja toda a minha totalidade. Quando percebo já estou outra vez no quarto de visitas que não cumpriu uma única vez sequer sua função. Jogado na fronha, preso na cama tubular de onde saem e ecoam os mais medrosos gritos e gemidos. E a chave da porta jogada para fora. O trinco me assiste. Dentro do meu cercado eu corro e me embrenho nas tramas do tecido amarelado de duro onde nunca ninguém se deitou. E tantos nesse mundo ainda dormem de pé. Muito aos poucos, Deus do eterno injusto. Por que, Maria?
Com olhos apavorados ele ainda permanece vivo e desesperado, cerceado dos mais profusos perigos, mortos ou vivos. Cúmplice de todos os horrorosos genocídios, ainda espera sua sentença, sem território, nação ou pátria. Protegido pela total falta de proteção. Como mariposas atraídas pela luz, ele é todo um povo atraído pelo perigo luminescente. Então incandesce luz que emana – imanente. Sem mencionar o espírito santo sorrateiro que de nada se afeta. Esquecido nesse mundo perdido de animais racionais e famintos, o espírito – se é que existe – morre.
Uma presença amortecida. Um estar aí mortificado. Um guache que pinga dentro do poço de água cristalina. E também a água cristalina que espirra dentro da tinta vermelha. Eu era a areia grossa, feita de pó de conchas e pedras preciosas. Vez ou outra, um corte, mas também uma nova cicatriz cauterizada e rígida. Se aqui termina, pode acolá principiar de novo?
E um camaleão dentro de um caleidoscópio, você já se perguntou? O que é que dá? Dá? É? E aí? As multifacetas o pirariam, ou ele já seria pirado apenas pelo fato de ser camaleão nesse mundo de tevê a cores e tridimensionais? Mas o camaleão não está desde antes e os povos com suas tevês desde pouco? Talvez não seja questão de quem veio antes e depois. Não apenas, ao menos. E se, ao invés de multicolor, fosse multiforme? As coisas seriam assim tão diferentes? Ou, pior, seriam assim tão iguais? O que é normativo pode também ser incomum? O camaleão sobreviveria? Esse mundo é cinza ou é colorido em toda sua gama? Acho que tudo é uma questão de momento, de momentos. Ele não sei. Eu não sabemos. Às vezes tocamos os limites, e aí é infravermelho ou ultravioleta. Se não tão drástico, um calo na testa por alcançar o teto e os galhos em súbita expansão. Quando não em diminuto, perdido nos juncos do chão laminado e nas dobras das pedras. Como bom camaleão que sou, não sei. Não obstante, permaneço sendo. E sento, porque ainda tem muito chão pra trilhar e passar por debaixo das minhas patas nossas. O absurdo é somente questão de opinião.
Lá, bem pra lá, tinha um mundo azul, bem azul. Você não lembra? Antes de Deus e todas as outras ilusões. Tempo de um silêncio absoluto e apenas ali sagrado. Provavelmente ainda era dia. O absurdo, é somente questão de opinião?
Maria?!