Dez poemas de José Carlos Brandão
José Carlos Mendes Brandão nasceu em Dois Córregos, SP, em 28 de janeiro de 1947. Mora em Bauru. Publicou O emparedado (Cia. Editora Americana, Rio, 1975); Exílio (Massao Ohno Editor, São Paulo, 1983, prêmio “José Ermírio de Moraes”, do Pen Centre de São Paulo, para melhor livro publicado no ano, 1983/1984); Presença da morte (Nestlé/Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1971, prêmio V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira; Poemas de amor (Joarte Editora, Bauru, 1999); O silêncio de Deus (Edição do autor, Bauru, 2009); Memória da terra (Sec. de Cultura de Bauru, 2010); O sangue da terra (da Sec. de Cultura do Ceará, 2010; A hora do gavião (crônicas, Sec. de Cultura de Bauru, 2014); e Livro dos bichos (edição artesanal de 30 exemplares, Bauru, 2016, prêmio “Jorge de Lima” da U.B.E. – Rio). Recebeu ainda o prêmio “Brasília de Literatura” por um livro de poesia e o “Cidade de Belo Horizonte” por um romance, inéditos.
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Este é um país triste
O meu país não está mais aqui, foi levado pelas nuvens.
As nuvens negras viraram o meu país do avesso.
Calcei o sapato da noite e parti para jamais.
O sapato era como uma ferradura no meu pé.
A física da gaivota não é a mesma que a física do homem.
Quando a gaivota pousa na pedra, a pedra tem asas.
A sombra, dura, cai sobre a cidade dos homens.
A esperança acena no horizonte com uma corda no pescoço.
O homem canta e dança para as montanhas pesadas de pó.
Eu sou uma árvore e estou pesado de pó e chumbo.
Mergulhei na vida como cobre e enxofre espumando.
Previsão do tempo: calamidade. Os ratos ainda roem.
*
Ninguém dorme neste país
Ninguém dorme neste país. Ninguém dorme.
Os pesadelos sonhamos acordados.
As estrelas caem, explodem, pulverizam-se.
O leão lambe o sangue do coração no meio da rua.
Um morto na mesa do bar olha a paisagem no espelho.
Mariposas caem, crocodilos bocejam.
Enterramos o menino com uma flor na boca
e os cachorros uivavam a sua tristeza para a lua.
A vida é real. Temos terra e estupor na boca
enquanto descemos as escadas das dálias e do frio.
Calem-se as serpentes do olvido. Cale-se o sonho.
Carrego a exultação da morte nos ombros.
Os cavalos pastarão o verde dos olhos mortos,
as formigas se multiplicarão nos cabelos que crescem,
não param de crescer.
Os sapatos percorrerão os caminhos deserdados,
a mãe mumificada estende a mão na beira da estrada.
Ninguém dorme neste país. Ninguém sonha.
A vida é real. Erguemos com júbilo um brinde ao nada.
*
Viver com medo
Aprendemos a viver com medo.
Em toda refeição há uma gota de sangue
de uma pomba ou de um gavião.
Há uma gota de sangue de uma mãe ou de seu filho.
Somos filhos do medo.
No meio da noite, nas madrugadas sonolentas,
no meio-dia do sol a pino e do cansaço,
em todas as horas do dia,
somos dependentes do medo terrível.
Eia. É a rosa do medo.
Os meninos doentes têm medo.
Todos temos medo
e vomitamos nossa bílis medrosa por onde passamos.
Só se vê a paisagem do medo.
As árvores pendem para a terra carregadas de frutos do medo.
*
O silêncio escuro
O silêncio escuro da rua morta
o vento doendo nos olhos de lama negra
os barcos à deriva sob o vento oblíquo
os girassóis votados aos olvido.
O olvido era nossa herança e pingava como um óleo grosso.
Onde a rosa da manhã?
Onde a rosa da tarde?
Pisávamos flores de pedra
um muro de pedra impassível nos tolhia o caminho
a pedra aponta o caminho para a pedra.
Serpentes deslizam entre as pernas das meninas.
As serpentes são o símbolo da luta contra a morte.
*
Ensaio sobre a cegueira
Muitos homens partiram daqui para jamais.
Já não tinham pátria, mas ainda viviam.
Ouça a voz do vento, ouça a voz da terra,
ouça o clamor dos homens sem esperança.
Os homens tinham cinza nas mãos,
os homens tinham cinza na língua.
Era tanta a escuridão que cegava.
Hoje não há mais essa escuridão,
mas a memória do carvão e da cinza.
Os teus braços se abrem procurando a luz,
mas os olhos estão completamente cegos.
*
O machado não corta a árvore de pedra
O machado não corta a árvore de pedra,
as bicicletas giram doidas como aviões na cabeça,
os espinhos dançam entre as flores dos cactos,
um menino morre afogado no lodaçal,
homens sem cabeça cavalgam na estrada,
as lágrimas das mulheres não medem a dor.
Um político de pedra gesticula em cada esquina,
a memória do sol de metal reverbera,
os generais erguem a espada contra a poesia,
o cavalo morto apodrece à beira da estrada,
os homens mortos marcham rumo ao abismo,
o pardal voa e cai morto sobre um carro fúnebre.
*
A viagem
É preciso enterrar os mortos,
depois chorar copiosamente na noite silenciosa.
As pedras da noite estarão úmidas,
as pedras irão desfazer-se entre os meus dedos.
O meu coração treme como os seres do mar,
a parede branca estará lavada de lágrimas.
O touro escarvava a arena ferido pelo aguilhão da morte.
A luz da lua tremula sobre as ruínas aflitas.
É preciso antes enterrar os mortos,
depois comer o pão salgado, o pão preto.
Depois montar na égua com sangue no dorso
ouvindo os gemidos nos telhados vermelhos.
Depois pensar as feridas.
A viagem continua, entre as brumas.
*
O cansaço das coisas
A cidade está em festa pelo meu assassinato.
Uma serpente desce do céu em chamas,
as árvores no bosque de cristal se quebram,
os lobos uivam como loucos e morrem nas ruas.
A água desesperada não canta mais
e o menino se deita na pedra para a morte azul.
Os bichos pequenos estão com as cabeças abertas.
Uma luz líquida brilha nas trilhas da montanha.
O cansaço das coisas me invade os membros lassos,
o meu cachorro chora baixinho sobre o meu túmulo futuro.
Não reconheço a minha face no espelho.
A cidade inteira em festa pelo meu assassinato.
*
A minha história
Quem me assassinou?
Ninguém? Mas onde estavam todos?
Todos são culpados, sem remissão.
As tulipas pendem a fronte, compulsivas.
Eu sou o afogado que o mar não quis
e devolveu à praia silente
como uma coisa inútil, que atrapalhava.
As gaivotas gritavam no ar da manhã
e caíam aos meus pés.
As ondas iam e voltavam, ininterruptas.
Um caranguejo se afastava vagaroso.
Quem me assassinou ignora a minha história.
*
O curso das coisas
O pó repousa sob o assoalho entre as estátuas e o zinabre,
o silêncio da fonte seca com os seus peixes de ar.
Os meus olhos não viam as imagens do sonho
nem da cruel realidade.
Cortem a minha garganta.
Arranquem os meus olhos.
O curso das coisas é limitado pelo sol do nada.
Ninguém neste mundo de vácuo e dor.
Ouçam a manada de búfalos distantes.
Ouçam o barulho das galáxias se afastando.
A minha nudez brilha sob o escuro do universo.
Estou definitivamente só.