“Koe no Katachi (A Silent Voice)” (2016)
Koe no Katachi (A Silent Voice). Direção: Naoko Yamada. País de Origem: Japão, 2016.
Shôya Ishida, 17 anos, quer cometer suicídio. Ele toma todas as providências para executar a ação, entre elas a de vender seus móveis e pertences para pagar a dívida financeira que tem com a mãe. Shôya carrega uma culpa, é corroído pelo arrependimento e experimenta o isolamento social, a solidão. Apesar do desejo de concretizar o intento de tirar a própria vida, o rapaz fracassa. A partir desse ponto, Koe no Katachi – depois de um recuo temporal que nos leva há seis anos, quando Shôya estava no último ano do ensino fundamental – explora as consequências do bullying, o impacto que o ato produz na vida daqueles que o sofreram e também daqueles que o promoveram. Sendo o efeito da prática devastadora, a diretora Naoko Yamada e a roteirista Reiko Yoshida, adaptando o mangá de Yoshitoki Oima, realizam um estudo de personagens, atentando-se em escutar a voz da vítima, dos agressores e dos que os cercam (familiares e amigos). Uma decisão que torna a obra complexa, com os mais variados sentimentos em choque, o que possibilita a apresentação de um quadro emocional revelado de modo denso e delicado.
A menina Shoko Nishimiya é surda e vive a expectativa de uma recém-transferência. O seu método de comunicação é um caderno, no qual escreve suas perguntas e respostas, já que raramente os colegas dominam a linguagem de sinais. Mas a sua deficiência é alvo de chacota de colegas e de perseguição por Shôya, que incentivado pelos colegas, torna-se cada vez mais cruel com Shoko. Com o tempo, a tensão cresce, e o jeito compreensível de Shoko e o suposto atraso na aprendizagem da turma que sua presença significa começam a irritar outros alunos, entre eles Naoka Ueno, que estimula Shôya a aumentar a frequência e a intensidade de seus abusos. O agressivo e confuso Shôya passa a destruir os aparelhos auditivos de Shoko, até o dia em que faz sangrar o seu ouvido. Mas é um ato que não passa impune. Além do sofrimento a Shoko (que se transfere de escola), ele envolve a mãe, que passa a ter uma dívida devido a sua irresponsabilidade. Denunciado e isolado pelos colegas de classe, é Shôya quem se torna vítima de perseguição, transformando-se em um pária social. A vida escolar no filme de Yamada revela o que uma sociedade baseada na tradição e nas relações hierárquicas costuma esconder: a intolerância à diferença e o sucesso como força motriz do respeito.
O desenvolvimento não linear de Koe no Katachi aproveita as cenas angustiantes e chocantes de sua primeira parte para tornar credível o presente de Shôya, seu remorso e tentativa de atenuar ou dirimir os danos causados pelos seus atos. Ao se reaproximar de Shoko, encontra uma garota ainda frágil, que deseja ser sua amiga. A redenção do rapaz passa em reviver o assédio cometido, assim como os seus resultados.
Tanto Shôya quanto Shoko carregam consigo sentimentos que precisam lidar e que os fere silenciosamente. Shôya, ao passar de abusador a abusado e pelo arrependimento, sofre de ansiedade social e Shoko tem aversão a si mesma e esconde sua depressão exibindo sempre um sorriso de compreensão. Há toda uma gama de dores emocionais ligada à auto-percepção como uma aberração. Dois jovens perdidos em seu mundo de angústias e solidão. Há como pessoas destroçadas pela auto-repulsa e pela culpa reconciliarem-se com a vida e se sentirem confortáveis com a pele que vestem? Koe no Katachi percorre essa questão, mostrando que a perfeição é algo inatingível para o ser humano. Somos movidos por acertos e erros, e até nossos sentimentos mais nobres podem conter em si um impulso egoísta. E a pergunta que Shôya se lança e que contribui para que o roteiro de Yoshida se complexifique e trabalhe com eficiência e sutileza os assuntos que trata.
Koe no Katachi é feliz ao evitar que o romance tome o primeiro plano. Ainda que haja o interesse romântico, são a amizade e a redenção os principais tópicos a se examinar. Desse modo, o longa-metragem de Naoka Yamada fala sobre as medidas possíveis para corrigir os nossos desacertos, mesmo que o passado não possa ser anulado. Neste sentido, as personagens secundárias têm uma função fundamental na dinâmica da relação entre Shôya e Shoko e revelam seus próprios defeitos e virtudes. Yuzuru, a irmã mais nova de Shoko, é um dos destaques. Inicialmente confundida com um menino por Shôya, ela aos poucos começa a aceitar a presença do rapaz na vida de Shoko. Protetora e rebelde, deseja que a irmã encontre seu lugar no mundo. Naoko Ueno é uma das personagens mais complicadas, pois pode despertar a antipatia da audiência. Uma das assediadoras de Shoko na escola, ela continua a não entender e não aceitar o comportamento pacífico e a passividade da menina. Acusa-a de ser arrogante e manter em sua mente o que realmente pensa, uma atitude que, segundo ela, acaba gerando transtornos. Já as mães Miyako Ishida e Yaeko Nishimiya são retratos da diferença e espelhos da semelhança, pois são mulheres que carregam suas dores, mas encaram a vida de maneira distinta. Miyako é cabeleireira, liberal e amorosa. Yaeko é enfermeira, rigorosa e menos afetuosa. Ambas amam seus filhos. Elas são solteiras, sustentam um lar, realizaram sacrifícios pela harmonia de suas casas (o abandono parental também é uma realidade no Japão). É preciso ressaltar que o cunhado de Shôya é um homem negro, um marinheiro brasileiro, o que comprova o ambiente de tolerância e respeito às diferenças administrado por Miyako. Ao mesmo tempo, apesar da personagem ser figurante, sua integração à família diz algo sobre a mudança de Shôya e a contemporaneidade japonesa.
O roteiro traz soluções surpreendentes e grande impacto para traduzir a solidão e ansiedade social de Shôya, o seu pavor de olhar para os olhos das pessoas. Em lugar de rostos, ele vê um enorme X. O que mostra, além do medo, a indiferenciação a respeito de características e qualidades que poderiam funcionar com atratores. Essa metáfora visual é um dos recursos que colaboram no desenvolvimento da narrativa. E na parte técnica, a animação é impressionante em suas cores e efeitos de iluminação.
Koe no Katachi leva ao público uma história sobre o perdão. O bom e salutar “seguir em frente”. No entanto, não se trata de esquecimento. O passado não pode ser mudado, é uma marca. Quem pode mudar são as pessoas. Mudar a si mesmo para que o presente não seja a reprodução fatídica de momentos pretéritos. No outro extremo, a incomunicabilidade. A difícil arte da conversa (e de expor sentimentos) entre os humanos.
Koe no Katachi é uma bela mensagem universal. Duas almas feridas que se consolam, ajudam um ao outro a se refazer e também aqueles que estão ao seu redor. Da intimidação aos transtornos emocionais, da amizade à redenção, a obra de Naoko Yamada é delicada, ousada e realista, sem receio em dar voz ao agressor e apresentar os conflitos internos da vítima. Um retrato denso e terno da adolescência, com suas confusões, frustrações e idiossincrasias.