“Kuzu no Honkai (Scum’s Wish)” (2017)
Kuzu no Honkai (Scum’s Wish). Série de Anime. Direção: Masaomi Ando. País de Origem: Japão, 2017.
Alerta! Contém spoilers!
Enquanto a pessoa amada não nota a sua presença, corresponde aos seus sentimentos ou ouve sua confissão, pode-se encontrar um substituto para se consolar, um refúgio para aplacar a solidão e dor de um amor impossível. “Estamos namorando. Mas somos os substitutos para outra pessoa”. Frase que surge após um beijo entre os protagonistas Hanabi e Mugi. Essa é a premissa da série de anime Kuzu no Honkai (em inglês, Scum’s Wish, que pode ser traduzido como O Desejo da Escória), adaptação do mangá escrito por Mengo Yokoyari, produzido pelo estúdio Lerche.
Hanabi Yasuraoka é uma estudante do ensino médio apaixonada pelo professor Narumi Kanai, que conhece desde a infância, já que é um amigo de sua família. Mugi Awaya, outro estudante, é apaixonado pela professora Akane Minagawa, que costumava ser sua tutora. Kanai e Akane começam a ser envolver romanticamente, o que deixa os jovens ainda mais consternados. Em situações semelhantes, eles entram em acordo e decidem forjar um namoro (uma amizade com benefícios, ou seja, com atos sexuais), em que Hanabi torna-se a substituta da professora Akane e Mugi o do professor Kanai. Juntos, fingem estar nos braços de seu primeiro amor. O quanto criar sucedâneos para alguém que você deseja funciona? Laços forjados se tornam uma relação íntima em que sentimentos verdadeiros possam fluir? As respostas a essas questões são alguns dos desafios de Kuzu no Honkai ao longo de seus doze episódios, com cerca de 22 minutos cada.
Tratando de amor, solidão, indiferença, cinismo e amadurecimento, o anime tem um excelente desenvolvimento psicológico de seus personagens. Ao quadrado de apaixonados/amantes, ainda se juntam Sanae Ebato, também chamada de Ecchan, amiga de Hanabi, que se confessa para a jovem, e Noriko Kamomebata, amiga de infância de Mugi, por quem nutre uma paixão desde a infância. A partir desse tonel de sentimentos, Kuzu no Honkai não faz concessões ao expor o pior que há no ser humano, mas sem julgar as personagens, mostrando os motivos de tais ações, por mais inaceitáveis que elas pareçam. Não somos 100% decentes e nem 100% vilões. É o tal desejo da escória. Assim, descobrimos que a professora Akane não é a mulher meiga que aparenta ser. E essa descoberta leva Hanabi a desejar superá-la, já que Akane só se sente feliz quando é capaz de conquistar para depois abandonar, sentindo prazer com o mal que realiza. Mas o problema é que, ao fazer isso, Hanabi (movida pela curiosidade e pelo medo) precisa lidar com o vazio que a consome e com as decisões que toma para preencher esse buraco que a traga cotidianamente. E Akani ao perceber o interesse da garota por Kanai e sua relação com Mugi converte-a em sua rival, criando situações para ser cortejada pelo colega de trabalho. Em jogo está o desejo desses homens e a quebra total de confiança de Hanabi.
O duelo psicológico entre Hanabi e Akane, anti-heroína e antagonista da série, tem no corpo sua fronteira, já que o domínio que a professora adora exercer tem sua anatomia como principal instrumento, mas é o sabor da manipulação, sem se importar com os sentimentos de ninguém, apenas controle e descarte, que a move. Um sentimento de superioridade que precisa ser alimentado, seja com o olhar do derrotado ou o choro daquela que vê seu amor despedaçado facilmente. Por isso, corpo e consciência são os adversários que Hanabi precisa subjugar para vencer a disputa estabelecida. Até onde estaria disposta a ir para obter o triunfo sobre Akane? Poucas vezes o massacre emocional em que nos encontramos foi tão bem delineado. Dúvidas e sentimentos obscuros sendo reflexos de um vazio que se torna uma espiral de decisões que irá machucar quem está próximo.
Voltando ao corpo, o sexo é a ferramenta para Akane que quer ter os homens a seus pés e ver a miséria nos olhos de quem perder o seu “amado”. Sexo é controle e neste controle que reside o prazer. Para Hanabi, há uma decisão a se tomar: o que o sexo significa. Hanabi transa com Ecchan, mas leva um tempo para conseguir se entregar/confiar em um homem. O sexo assume várias perspectivas (até a da autodestruição), sendo triste e sensual, expressão de uma dor, fuga da solidão ou tentativa de encontrar o desejo – talvez onde ele não exista.
Quanto aos outros personagens, Mugi é um solitário, que coleciona a atenção que pode despertar nas mulheres. Mugi e Hanabi fogem do desespero, e é esse o elo entre eles, mas também aquilo que os afasta. Fascinado e obcecado por Akane, imagina o que seria um amor verdadeiro, até a chance de namorar Hanabi pra valer. Só que os sentimentos pela professora – cuja real face não lhe é desconhecida – ultrapassam a lógica. Já o professor Kanai ama verdadeiramente Akane. Mas ele se vê como um homem simples, apegado à família, feliz por lecionar. Já Ecchan se entrega à paixão que sente por Hanabi, por mais que a amiga resista, tentando valorizar a porção daquilo que a faz uma pessoa melhor, que é a amizade que pode ser destruída por um envolvimento sexual. Mas elas acabam tendo um caso, em que Hanabi tem prazer e culpa com o desejo que desperta em Ecchan, que, por seu lado, aproveita de um momento de fragilidade da amiga para revelar a paixão que sente. Scum’s wish. Até o ponto em que suas razões egoístas para se envolverem não enganam mais a dor que a impossibilidade de um futuro amoroso entre elas.
A narrativa melancólica e poética de Kuzu no Honkai transmite toda a tristeza que essas personagens, que buscam alívio para a sua depressão, carregam consigo. Tristeza que o visual do anime nos revela em recursos imagéticos impressionantes. Os tons escuros ganham a tela toda a vez em que o desalento é o sentimento primordial das personagens. E conforme cada um descobre algo novo, que o auxilia em seu processo de amadurecimento, o anime vai deixando os tons escuros e tornando-se mais iluminados. A paleta de cores suaves confere poesia à produção. Cenários e transições beiram à perfeição. A riqueza da animação é um dos pontos altos da série. Assim como a sua trilha sonora e a direção inventiva de Masaomi Ando (diretor de Gakkougurashi! (School-Live!), de 2015).
Com um roteiro bem elaborado (de Makoto Uezu), com diálogos inteligentes, profundidade psicológica e alta dose de melancolia, Kuzu no Honkai foge dos clichês da série de vida escolar e se torna um romance em que a solidão, a ambiguidade e o gosto pela manipulação estão em foco, evidenciando intrigas e o quanto as aparências enganam. Um tratamento adulto para assuntos seculares, que, geralmente, são engolidos por estereótipos.
Kuzu no Honkai é uma história amarga, com os conflitos internos das personagens revelando que o amor nem sempre é bonito, ainda mais quando se trata de amores não correspondidos e o que podemos fazer para sufocar a dor que essa lacuna nos lega. Nisso, a série é realista, cruel – expondo caracteres e ações que a moral e os bons costumes reprovam – e corajosa ao apresentar um desfecho que enfrenta as expectativas do público e não cede a um final feliz (ainda que todos consigam amadurecer no percorrer do doloroso processo). Introspectivo (apesar da perversidade já mencionada e de alguns descaminhos das personagens), Kuzu no Honkai sugere que, para além da infelicidade de um coração partido (e até do vazio interior), há um horizonte que nos espera, desde que tenhamos a iniciativa de mudar e crescer.
Kuzu no Honkai tem uma versão live action que foi ao ar também de janeiro a março de 2017 (com 12 episódios).