“Lady Bird: A Hora de Voar” (2017)
Lady Bird: A Hora de Voar. Direção: Greta Gerwig. País de Origem: Estados Unidos, 2017.
A atriz e roteirista Greta Gerwig faz em Lady Bird: A Hora de Voar sua segunda incursão na direção cinematográfica (Gerwig é codiretora de Nights and Weekends, de 2008). Em boa parte das produções em que atuou, os encontros e ruídos na comunicação humana destacam-se como fonte para perscrutar sonhos e inquietações de jovens adultos batalhando para afirmar/criar sua liberdade, isto é, um lugar no mundo. Lady Bird segue esse curso, firmando de modo resoluto um olhar espirituoso e maduro para o cotidiano de uma família em Sacramento, capital do estado norte-americano da Califórnia.
Uma das primeiras cenas traz Christine (Saiorse Ronan), autobatizada Lady Bird – ela é sempre enfática nisso, “é um nome dado a mim, por mim”” –, e sua mãe, Marion (Laurie Metcalf), indo da confraternização à altercação em um piscar de olhos. A cena do automóvel, que culmina com Lady Bird se atirando porta afora sem medo de chocar-se com o asfalto, tem em seu domínio os temas e subtemas pelos quais o filme transita: relações afetivas, afã por independência, aspiração cultural/educacional e crise econômica. Apesar da tão ardente discussão entre mãe e filha (com mais embates por vir) não é uma obra sobre conflitos de gerações. Lady Bird é um coming of age que tem na expectativa de deslocamento – como meio de asserção de propósitos, logo, de realização pessoal – e na não percepção do ethos comunitário como formadores da identidade seus principais assuntos. É preciso conhecer, e até amar, para recusar. O contraste entre a personalidade de duas mulheres movimenta a trama.
Christine “Lady Bird” McPherson não é uma garota fácil. É determinada, irritante e um tanto egoísta. Mas é carismática na mesma medida. Uma adolescente como qualquer outra, com suas certezas e contradições. Sendo uma história sobre amadurecimento, é óbvio que o autoconhecimento acompanha a jovem em suas peripécias no limiar da vida adulta. Lady Bird quer ir para uma universidade distante de sua cidade natal. Esse desejo basta para que mãe e filha não se entendam. Sentimentos podem ser difíceis de expressar e o não dito faz parte da existência delas. Sair de Sacramento torna-se para Lady Bird a melhor forma de concretização de suas aspirações criativas, de sua independência. Mas sua vontade esbarra em Marion, que trabalha arduamente como enfermeira e tem muitas preocupações para sustentar a casa, já que o marido está desempregado. O conformismo exigido por Marion (e ao qual a própria se resigna) é sintoma de uma crise econômica aguda.
O roteiro de Greta Gerwig nunca perde de vista que no início dos anos 2000, tempo em que transcorre a obra, o curto-circuito no sistema financeiro (agravada pelos atentados de 11 setembro de 2001) afetou muitas famílias nos Estados Unidos, resultando em fechamento de postos de trabalho, subempregos e endividamento da população. A dureza de Marion é o desespero de quem precisa suportar as intempéries de uma vida de boletos e dinheiro contado para honrar os compromissos relacionados às finanças da casa. Lady Bird, se não é insensível às dificuldades da família, não se preocupa de modo tão enfático a ponto de abrir mão de seu maior objetivo: uma faculdade que engendre um panorama de aventuras e desafios, uma vida cultural efervescente.
Por isso o que Lady Bird almeja está para além do colégio católico que frequenta (segundo os pais, por uma melhor educação e para se livrar da criminalidade presente na escola pública) e da vida suburbana “do lado errado dos trilhos” (como costuma se referir à região em que mora). Um misto de afeto e vergonha estão sempre a se digladiar na rica vida interior da jovem.
Como em um típico coming of age Lady Bird também passa por suas experiências românticas e sexuais. Primeiro com Danny (Lucas Hedges), com quem vive uma bela história de afetuosidade e cumplicidade, até descobrir que o jovem precisa lidar com questões relacionadas à sexualidade. E mais tarde com Kyle (Timothée Chalamet), rapaz abastado chegado a teorias de conspiração e de uma indiferença tranquila, que ele não se furta a usar como método de sedução. Entre a frustração e o aprendizado, esses vínculos não afastam Lady Bird de suas prioridades: o desejo de evasão de Sacramento e a ambição universitária.
Lady Bird: A Hora de Voar possui uma personagem principal que sabe o que quer e tem a noção exata de suas limitações, seja a respeito de suas notas, seja da condição financeira de sua família. Contando com o apoio do pai, Larry (um ótimo Tracy Letts), Lady Bird insiste em seu intento e se inscreve em algumas faculdades em segredo de Marion. O que resulta na amplificação dos desencontros entre mãe e filha. Larry é um homem apático e amoroso, que lida há anos com a depressão, intensificada com o constrangimento que sente pelo desemprego. Informação que Lady Bird desconhecia, assim como o afeto que a cunhada Shelly tem pela sua mãe, que a acolheu quando os pais a expulsaram de casa. Dados que a abalam aos poucos, aproximando-a do elo que corria o risco de romper-se. Mas Lady Bird está convicta de suas aspirações. Se seu pai, citando Keith Richards, diz ser “feliz por estar em qualquer lugar”, a jovem sabe que domar o impossível (ou aquilo que cremos como tal) é uma questão de tentativa. Para apontar o erro das probabilidades contrárias, é preciso arriscar-se.
O filme de Greta Gerwig, que cresceu em Sacramento (pinceladas autobiográficas enchem o ecrã), vale-se pela naturalidade, desde a amizade, briga e reconciliação de Lady Bird com sua melhor amiga Julie (Beanie Feldstein) até os entreveros com o irmão Miguel (Jordan Rodrigues), um jovem com formação acadêmica em busca de um emprego estável. Porém, é na relação entre Lady Bird e Marion que está a força do longa-metragem de Gerwig. Saiorse Ronan e Laurie Metcalf transmitem a angústia, os anseios, as frustrações e também o amor sufocado na garganta que essas mulheres nutrem uma pela outra. As nuances de Lady Bird, que pode ir de uma atitude altruísta a uma ação egoísta, confirmam o ultrapassamento de Ronan do título de “atriz mais promissora de sua geração” e a transformam em uma realidade incandescente (já são três indicações ao Oscar).
Ao atravessar a fronteira e conhecer, enfim, o reino tão desejado, Lady Bird amadurece, mas não um tornar-se adulta vislumbrando o futuro, concretizado pela bem-sucedida fuga (e é nisso que o coming of age de Greta Gerwig difere de alguns de seus exemplares). O autoconhecimento ocorre quando reconhece os outros ao seu redor, quando volta o olhar para as suas origens, torna-se capaz de perceber como forjou a sua identidade e o que dela carrega, deve carregar, o que pode deixar para trás. Ou seja, a chave de sua individualidade está em entender sua formação para se projetar no futuro.
Tudo isso sem uma conversa direta entre mãe e filha. Toda sequência em que Marion escreve e descarta cartas para Lady Bird até o momento em que Larry diz que a esposa não as entregou para a filha por medo dela rir de seus erros gramaticais é comovente. Manifestação da incomunicabilidade e também do amor não expresso mesmo quando seus rastros são evidentes.
A adolescência já foi a estrela de muitas produções no cinema. Mas a autenticidade, a exuberância e a coragem para investir em seus personagens sem maquiar as suas imperfeições fazem de Lady Bird: A Hora de Voar um exemplar digno de aplausos (e prêmios).