Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos – “Cavalo Expiatório” – Por Juliene Leite
09 de dezembro de 2020, cabeças de cavalos são encontradas em uma área alagada no Bairro CPA III, em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. O local fica próximo a uma estação de tratamento de esgoto.
Uma varredura no local, realizada pela polícia, não trouxe a público nenhum vestígio do resto dos corpos dos cavalos. A suspeita é que os equinos foram mortos para produção de embutidos e carne seca para comercialização.
“Cemitério clandestino de cavalos”. É bizarro, absurdo e cruel. Vários crimes podem ser elencados. O principal: o assassinato desses animais.
Essa antologia virtual da Ruído Manifesto pensa esse caso inusitado e brutal, seja tratando diretamente do assunto, seja usando-o como pano de fundo para histórias tão cruas e incomuns.
O que há de inaceitável e surreal nesse fato é uma convocação à escrita, e a literatura está sempre alerta para dar vazão ao estranhamento, às indagações e à indignação que nos impulsionam ou assombram.
Bem-vindos à série de contos Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos, com curadoria do nosso editor Wuldson Marcelo.
A jornalista Juliene Leite, com o seu Cavalo Expiatório, dá continuidade a nossa saga. Estamos na reta final da antologia.
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Cavalo Expiatório
Maria é como todas as Marias. Às vezes, feliz, às vezes, triste. Às vezes, pensa na vida, mas, às vezes, acha um fardo pensar nela. Maria acorda cedo. Aprendeu com seu pai que era necessário chegar antes de todos, para mostrar responsabilidade e vontade de trabalhar. Maria parou de estudar, mas sonha em voltar. A sua mãe sempre diz: Quem sabe um dia.
Maria quando sai para trabalhar ainda está escuro, diz que não tem tempo para ter medo. Ela mora a algumas quadras do ponto de ônibus. Maria mora num bairro que antes foi ocupação, mas algumas pessoas falam de invasão, outros ainda chamam de “grilo” e para tantos outros é quebrada.
Maria, geralmente, é a primeira a chegar ao ponto de ônibus. Ela sempre diz que não tempo para o medo. Nem sempre o ônibus passa no horário. Contudo, fica aliviada quando os colegas de calvário surgem na alvorada. Para Maria, coisas ruins podem acontecer a qualquer momento.
Maria saiu cedo na escuridão, como todos os dias. Às vezes, pensa na vida, por vezes, acha um fardo pensar nela. Quando pensa, tem vontade de gritar. Maria está cansada.
Como todos os dias, ônibus lotado, pessoas conversando e outros calados. Uns olhando para o nada. Alguns com olhar esperançoso. Muita gente vazia. Pessoas mascaradas. Máscaras caem. Ela riu desse pensamento. Riu ao observar um homem com uma máscara preta com a figura de um diabo vermelho. Depois, pensou que poderia estar pecando, rezou em pensamento.
Maria está cansada, nessa hora, pensa que poderia estar bem longe dali. Ela não gosta muito de se perder em tantos desvarios. Silêncio. Até que ouviu uma voz feminina dizer: O ser humano é um lixo! A frase chamou sua atenção. A voz feminina continuou e continha revolta em suas palavras. A mulher contava para outra que ouvia incrédula a história sobre um cemitério de cavalos. Ela se chocou com a conversa.
– Nossa, aqui no CPA?! – pensou que tivesse falado em voz alta. Olhou ao redor e tudo continuava como antes.
Nem sabia por que estava chocada. Os animais vivem e morrem. Ao mesmo tempo, sentiu profunda tristeza. Por alguns segundos, imaginou que talvez um cavalo pudesse sentir todas as dores do mundo. Pensou em seus corpos sendo cortados e dilacerados. Suas cabeças flutuando numa água suja e lamacenta. Tentou pensar no motivo de tanta maldade. Ela se lembrou que viu no jornal que, na China, come-se cachorro. Pensou, afinal, comemos animais. Qual a diferença? Sentiu nojo de si mesma.
Quase perdeu a vez da parada. Caminhou um pouco, parou na lanchonete da esquina. Pediu uma coca e uma coxinha de massa de mandioca com recheio de carne. Pediu o ketchup, olhou as horas, engoliu o seu café da manhã e correu para mais um dia de trabalho.
* Juliene Leite. Cuiabana e jornalista. Às vezes, escreve. Gosta de desenhos e fotografias.
(Capa: Marianne rêve, de Robin Isely).