Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos – “Cavalos” – Por Divanize Carbonieri
09 de dezembro de 2020, cabeças de cavalos são encontradas em uma área alagada no Bairro CPA III, em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. O local fica próximo a uma estação de tratamento de esgoto.
Uma varredura no local, realizada pela polícia, não trouxe a público nenhum vestígio do resto dos corpos dos cavalos. A suspeita é que os equinos foram mortos para produção de embutidos e carne seca para comercialização.
“Cemitério clandestino de cavalos”. É bizarro, absurdo e cruel. Vários crimes podem ser elencados. O principal: o assassinato desses animais.
Essa antologia virtual da Ruído Manifesto pensa esse caso inusitado e brutal, seja tratando diretamente do assunto, seja usando-o como pano de fundo para histórias tão cruas e incomuns.
O que há de inaceitável e surreal nesse fato é uma convocação à escrita, e a literatura está sempre alerta para dar vazão ao estranhamento, às indagações e à indignação que nos impulsionam ou assombram.
Bem-vindos à série de contos Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos, com curadoria do nosso editor Wuldson Marcelo.
Para encerrar a antologia, temos Cavalos, uma ficção bem realista de nossa também editora Divanize Carbonieri – finalista do Prêmio Jabuti 2019, na categoria Conto.
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Cavalos
“Crânios de cavalo são encontrados em cemitério clandestino de animais em Cuiabá”
Será que é para comer?
Carne de cavalo não serve para comer.
Mas na Mongólia eles comem. Ou comiam. E bebiam leite de égua.
Talvez a gente aqui não coma porque cavalo é um animal útil para o trabalho.
Mas nem sempre o animal pode ser útil. Há o tempo em que fica velho.
Carne de cavalo velho é impossível de se comer porque deve ser muito dura.
Não existe carne impossível de se comer.
Verdade. Calangos, urubus, roedores. Com a necessidade, se comem. Mas por que alguém comeria carne de cavalo havendo outras mais baratas?
O quilo do contrafilé está 36 reais no Atacadão.
Contrafilé é carne de rico. Pobre come patinho.
Patinho não sai por menos de 30 reais.
Carne moída então.
Custa mais de 20 reais o quilo.
Será que sai mais barato matar um cavalo? Desossar, destripar, decapitar?
Se você rouba o cavalo, é de graça.
Mas onde tem cavalo para roubar assim em quantidade? Quem tem cavalo cuida.
Se você tem um cavalo que não consegue mais ajudar na lida, é até providencial que alguém o roube. Na verdade, acho que nem tem necessidade de roubar.
Como assim?
Suponha que já exista um grande esquema de descarte de cavalos velhos, com os proprietários contando com os açougueiros clandestinos para se livrar dos pangarés.
Faz sentido. Um dia fui visitar um amigo que trabalhava numa fazenda de gado leiteiro. As vaquinhas viviam soltas. Tudo muito pacífico. Embora nem tanto, já que os bezerros ficavam separados das mães por boa parte do dia. Mesmo assim, o ambiente parecia calmo, sem violência. Os peões as chamavam pelos nomes, e elas não demonstravam medo nenhum. Daí me ocorreu perguntar o que acontecia com as vaquinhas quando paravam de dar leite. Com oito anos, elas são descartadas, enviadas direto para o matadouro, e os bezerros machos também. Só valia a pena para eles criar as fêmeas, junto com um ou outro reprodutor.
Então, pode ser que o mesmo matadouro de vacas velhas sirva para cavalos velhos.
Mas me pergunto quem vai comprar carne de cavalo velho. Onde vai comprar?
Se o açougue é clandestino, o mercado também deve ser.
Se é assim, por que não fazem isso com cachorros e gatos vadios, muito mais abundantes nas ruas?
Quem disse que não fazem? Desde que a gente mora aqui quantos gatos já não sumiram da noite para o dia?
É, e a gente nunca viu um cadáver sequer.
Tem muita gente que desaparece do nada também.
Misericórdia! Vamos mudar de assunto, por favor.
Sim. A outra matéria diz que voltaram a aumentar as mortes por covid.
Por que será? Será que o vírus se tornou mais agressivo?
Não, é porque os jovens estão se aglomerando nas praias e festas de fim de ano. Questão de saúde mental, estão alegando. Afinal, é época de férias.
Compreensível. E teve alteração no perfil dos mortos?
Não, 75% continuam sendo de gente acima dos 60 anos.
Alimentar cavalo velho é dispendioso mesmo.
* Divanize Carbonieri é doutora em letras pela Universidade de São Paulo e professora de literaturas de língua inglesa na Universidade Federal de Mato Grosso. É autora dos livros de poesia Entraves (2017), vencedor do Prêmio Mato Grosso de Literatura, Grande depósito de bugigangas (2018), A ossatura do rinoceronte (2020) e Furagem (2020), além das coletâneas de contos Passagem estreita (2019), finalista do Prêmio Jabuti e do Prêmio Guarulhos em 2020, e Nojo (2020). No Prêmio Off Flip, foi segunda colocada na categoria conto em 2019 e finalista na categoria poesia em 2019 e 2018. Em 2020, foi selecionada no Edital Estevão de Mendonça de Literatura Mato-Grossense, com o livro juvenil O insight dos insetos (no prelo), e nos editais da Lei Aldir Blanc, nível estadual e municipal, com os livros Vira e mexe, um pet (infantil) e Carga de cavalaria: haicais encavalados (haicais), previstos para serem lançados no primeiro semestre de 2021.
(Capa: Vasko Taškovski).
ANDRÉ ANDRÉ
Lindo texto, amei.