Leitura de “Essa armadilha, o corpo” de Rodivaldo Ribeiro
“Leitura de Essa armadilha, o corpo de Rodivaldo Ribeiro” é uma resenha escrita pela editora Divanize Carbonieri.
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Leitura de Essa armadilha, o corpo de Rodivaldo Ribeiro
“Vou ler o seu livro e escrever sobre ele”: não cumpri a promessa feita no ano passado ao amigo Rodivaldo Ribeiro, idealizador e colega editor da Ruído Manifesto. Demoro para escrever e parece que mil coisas se interpõem. Em duas ocasiões anteriores, me aconteceu o mesmo. Na primeira delas, devido a uma série de contratempos, posterguei o convite que faria ao escritor Santiago Villela Marques para publicar na revista, até que seu falecimento precoce impossibilitou definitivamente essa ação. Atrapalhou o fato de Marques não ter um perfil no Facebook na época, mas o email que eu planejava mandar ficou por enviar. Acabei publicando seus poemas postumamente, mas não sem uma sensação meio amarga.
A segunda ocasião foi um pouco mais bem-sucedida. Cheguei a contatar a poeta Tula Pilar e receber dela uma seleção de seus poemas. A publicação foi agendada, e tudo parecia bem. Até que a notícia de sua morte também repentina chegou alguns dias antes da data acertada. Sempre é triste fazer uma postagem póstuma, mas pelo menos tenho o consolo de ter trocado algumas mensagens com ela pelas redes sociais e guardo comigo a forte impressão de que era uma pessoa gentil e cheia de vivacidade.
E cá estou eu pela terceira vez lidando com a frustração de não poder homenagear um autor ainda em vida. Porém, realmente gostaria de registrar aqui algumas breves impressões sobre o livro Essa armadilha, o corpo (Chiado, 2018) de Ribeiro. Quando conhecemos pessoalmente um escritor, não é incomum lermos seus textos ouvindo internamente a sua voz. Foi o que ocorreu comigo lendo as vinte e duas narrativas curtas presentes na coletânea, que me foram apresentadas na voz um tanto rouca e baixa do meu amigo. Mais do que isso, pude constatar que muitos desses textos revelam as suas concepções de mundo.
O que se percebe, lendo-os, é um conhecimento profundo da realidade dura da vida, que não chamarei de pessimismo porque essa palavra talvez carregue uma carga de derrotismo que não se encontrava em Ribeiro, sempre aguerrido, nem nos seus textos. É antes um amadurecimento em meio ao caos e à desilusão, uma vez que “nossas vidas vêm sendo, há pelo menos um século, fartamente providas de tudo, menos luz” (p. 7). A primeira pessoa do plural implicada nesse “nossas” parece a princípio se referir a um legado familiar, já que tal reflexão vem após a recordação de um ensinamento dado pela mãe do protagonista de “Uma certeza”. Mas também corresponde inegavelmente a uma coletividade irmanada pelo “desespero sincero da espécie humana” (p. 7). Ou seja, de uma forma ou de outra, somos todos desgraçados nesse mundo de misérias.
Entre todas as desgraças possíveis, contudo, a pior delas é impor opressão aos semelhantes: “somos tubarões uns dos outros. Tubarões sim, porque lobos caçam em matilha e não comem-se a si mesmos, diferente do ser marinho e de nós” (p. 10), como afirma o mestre rabino em “Esboço”. Alguns se acostumam a isso, se resignam, mas há aqueles para os quais a resignação diante das injustiças é impossível; esses estão condenados a “amar as coisas com coração de menino, mas a enxergar tudo com embaçados olhos de velho; a ter aceso um peito aberto em brasa viva, mas a respirar e sorver nada além da fumaça tóxica das chamas” (p. 21). Essa espécie de “Bênção” ao inverso é justamente o que parece marcar as consciências que emergem em cada uma dessas pequenas narrativas.
Como podem se conduzir os amaldiçoados que escolhem enxergar as coisas como elas são? Que tipo de “Bússola” podem usar?
O que restou é o de sempre. Fingir ser forte e criar o quanto antes uma rota segura. Agora, além de entender, aceito meu destino – preciso ganhar tempo rodando, talhando com pés e mãos trilhas, de modo a evitar o centro do labirinto, onde o maldito monstro ruge, se debate e baba à minha espera. A jornada vai me transformar, mas também hei de modificá-la. “O caminho é o verdadeiro fim; muito além do chegar”. (p. 30).
Aquele que não se furta a realmente conhecer o mundo sabe que o que o espera é sempre a morte, seja em forma da perda de tudo o que se ama, seja com o fim derradeiro da própria vida. Diante disso, o que se pode fazer é aceitar o destino, mas ao mesmo tempo buscar ganhar tempo, abrindo caminhos que talvez não levem a nada, mas que devem ser trilhados na busca de sentido para o que parece desprovido de algum. O que não se pode fazer é render-se, estagnar-se: “Tudo que jamais quis era o silêncio do porto, o desembarque. Necessitava mesmo era do horror e da ausência vazia e surda dos grandes altos mares. Dito em proforma, nada além de um eterno afogar-se. Em terra firme” (p. 69).
O afogar-se às vezes se refere à asfixia dos relacionamentos amorosos. Em contos como “Uma ridícula carta de amor” e “Para Sofia (resposta a uma carta indevida)”, percebe-se um eu masculino intoxicado pelos desencontros do amor e atônito diante do enigma que lhe parece ser a mulher amada. Como é possível que ela seja esse outro cujas ações não são compreendidas, como pode não corresponder às expectativas do homem? O narrador dessas histórias está tomado de uma amarga agressividade que lembra aquela demonstrada pela voz narrativa de “Ventre seco” de Raduan Nassar (1997). Ferido pela rejeição, ele transforma a mágoa em arma de ataque:
Cínica! Querer disfarçar seus baixos instintos como vontade de “buscar algo melhor” do que eu? Faça-me o favor, jamais encontrou – e espero mesmo que encontre, desde que seja longe de mim – já que agora, sinceramente com toda a minha dor, já não me importo mais aonde isso vai te levar. Vá encontrar o seu destino e sofrer o peso irremediável dele, é toda a herança maldita que carrega (p. 66).
Ribeiro traz para a superfície a sensação de que a fonte do desdém é, na realidade, a dor de ser preterido. Põe mesmo a descoberto o desconcerto do narrador-protagonista de estar diante de uma mulher que se revela afinal independente, livre de “qualquer bem” que ele acreditava lhe dar. Será que a “herança maldita” que, segundo ele, ela sempre irá carregar é mesmo seguir seu destino? Ou seria o fato de algum dia tê-lo conhecido e amado?
Outro ponto relevante é que Ribeiro constrói os dois contos como uma sequência de cartas (ambas são assinadas por T.). “Para Sofia (resposta a uma carta indevida)” é, na verdade, uma segunda missiva, dessa vez endereçada à irmã da mulher a quem se dirigia em “Uma ridícula carta de amor”. A impressão que se tem é que o remetente precisa, de alguma forma, buscar eco em alguém próximo à sua amada, já que ela mesma parece ter feito ouvidos moucos às suas queixas. Se não por isso, por que envolver uma terceira pessoa na história?
Sofia, a única a ser nomeada, é sentida como uma espécie de consciência neutra, que talvez pudesse arbitrar em favor do suplicante. Mas obviamente não temos a sua resposta nem mesmo a de sua irmã, embora ele nos apresente indiretamente as palavras dessa última: “Hoje sou obrigado a engolir seco quando ela me diz que felicidade verdadeira é viver sem mim, que sempre lhe fiz muito mais mal do que bem e que hoje sua alma é leve por não ter mais de carregar junto o peso da minha” (p. 75).
Por meio dessas revelações, Ribeiro põe em xeque a possibilidade de identificação cega com T.. Ele nada mais é do que um narrador não confiável, que tenta contar a história exclusivamente a partir de seu ponto de vista, mas que deixa escapar, em vários momentos, que provavelmente as coisas não tenham se dado como diz. Tomando as falas da mulher como descabidas, como se ela estivesse sempre errada em se sentir dessa forma, ele dá pistas de que considera muito mais importante provar que está certo do que compreender o ponto de vista dela. O efeito que Ribeiro consegue com esse tipo de narração é permitir que o leitor conclua que a mulher tem, de fato, razão em se afastar de um homem que não está disposto a reconhecer suas necessidades.
Apenas um bom escritor torna possível entrever as fissuras nos discursos de seus narradores. Ler Essa armadilha, o corpo foi, assim, uma experiência realmente gratificante. Nesses contos e minicontos, se adivinha o talento de Ribeiro, que certamente teria potencial para nos proporcionar narrativas ainda mais instigantes e complexas se pudesse continuar a enveredar pelos caminhos da escrita. Espero que estas rápidas anotações, ainda que incompletas, sirvam de incentivo para que outros se interessem pelo seu trabalho, lançando sobre ele novas luzes.
Referências
NASSAR, Raduan. Menina a caminho. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
RIBEIRO, Rodivaldo. Essa armadilha, o corpo. Lisboa; Rio de Janeiro: Chiado, 2018.
Andreza
Surpresa boa. Essa leitura desportou-me sensações estranhas, difíceis de explicar uma fusão de dor e alegria. Dor por ter sido produzida nessa situação e alegria por ver uma análise tão fiel e REPRESENTATIVa de um trabalho tão intenso. Divanize Carbonieri possui um olhar, ao mesmo tempo, sensível e aguçado, Que faz com que nos aprofundemos nas entranhas da escrita/vida de RODIVALDO Ribeiro. Gratidão.