Literatura e Feminismo Negro: a voz de Patrícia Alves – Por Joe Sales
A coluna “Divagações de Joe” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna) foi criada por Joe Sales [Rondonópolis/Mato Grosso, 1991]. Poeta, professor de Língua Portuguesa e mestre em Estudos de Linguagem. Publicou cinco livros de poemas pela Editora Penalux: Porta Estreita (2014), Ao passo das horas e outro descabimentos (2015), Criticepopular (2015), Largo do amanhecer (2017) e Pelas luas: a mesma encruza (2019). Possui participações em várias antologias nacionais. Atualmente, desenvolve o projeto “leituras clandestinas” em que vozes convidadas dão vida aos contos do livro Clandestinamente.
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O feminismo negro tem reverberado nas mídias, dando mais ênfase à produção intelectual e artística produzida por estas mulheres. A filósofa Djamila Ribeiro (2018), em sua obra Quem tem medo do feminismo negro?, destaca que essa luta não é meramente identitária, uma vez que outras pautas que reverberam em nossa sociedade também são/constituem identidades. No campo da literatura, tais produções têm ocupado mais espaços. Em relação a isso, a pesquisadora Márcia Abreu (2006) afirma que a escolha dos textos literários está intrinsecamente relacionada a fatores que não respondem diretamente a existência de uma imanência literária em si, mas que passa por valores sociais (além dos estéticos). Nesse sentido, a produção literária de Patrícia Alves surge com fôlego trazendo à tona mulheres negras, seus conflitos (internos e externos), seus anseios e sonhos.
Segundo a autora, o que motiva sua escritura é a sua inquietação com o mundo. Patrícia, filha de trabalhadores (que não tiveram acesso ao hábito da leitura), realizou seu primeiro contato com o universo literário já na vida adulta, por meio das obras de Conceição Evaristo e Carolina de Jesus, que a fizeram acreditar que a literatura também era para ela. Em relação à descoberta, a autora rememora que na escola não foi possibilitada a esse contato e que a leitura de obras de autoras negras a despertou do sono que a tomava diante de outras narrativas.
Alves ainda afirma o papel político da escrita e reitera que sua produção é uma forma de agir sobre o mundo e dar às pessoas modos de entenderem suas experiências como pessoas negras. Neste momento pandêmico, ela tem encontrado na escrita uma maneira reinventar seus sentimentos e ultimamente está aprendendo a lidar com o concreto e incerto agora.
A escritora, também professora, e feminista negra foi agraciada com a publicação de seu conto “Adélia” na antologia Conto Brasil (2020) promovida pela editora Benfazeja. Esse texto narra a angústia de uma mulher escritora que vive a se indagar com sua existência no mundo, uma epifania clariceana diluída em passagens bruscas. Outro texto da autora se encontra no projeto “Pandeprosa” – promovido pela Ruído – o conto se nomeia “4h20”, em que somos apresentados a perspectiva de uma mulher negra que trabalha como doméstica e precisa retornar à sua casa depois da notícia do COVID-19. Recentemente, a autora também foi agraciada com a seleção de um conto em homenagem à Carolina Maria de Jesus, na edição 2020 da FLUP-RJ (A Festa Literária das Periferias). Deixo agora outro conto de Alves, que vive em Rondonópolis (natural de Guiratinga) desde os quinze anos, que tem se empenhado tanto na produção literária quanto na luta pela educação.
ENCONTRO
02 DE AGOSTO DE 2020
Entro no quarto determinada a ler aquele livro. Algo anunciava um encontro que há muito fora predestinado. As palavras tocavam meu peito como mãos em atabaques, era o início de uma viagem que jamais esqueci. Cada folha virada uma estremecida no corpo, um gole seco e minha vida a se misturar com o enredo. Nunca sentira nada parecido. As histórias de Luna, a personagem parda, se entrelaçavam às minhas me fazendo recordar da criança que outrora fui.
A menina encardida demais para ser branca e clara demais para ser negra. Assim como eu, ela sabia o sentindo de viver num limbo, éramos duas desterradas vagando por não lugares. Luna trazia angústias dentro de si que pareciam ser apenas minhas, foi um encontro de iguais. Mas, ela tinha vivido algo que eu não havia experienciado, sua infância foi nas terras da Grande Mãe. Sequestrada para a América aos 13, Luna sabia de onde viera, eu não. Ela vivera a diáspora e resistiu o quanto pôde o apagamento da ancestralidade, enquanto eu pouco ou quase nada conhecia sobre os subterrâneos desta história.
Sempre tive medo da morte, me ensinaram que estamos na Terra de passagem e quando o corpo falece o espírito desencarna com destino certo. Sem tempo para perdão só lhe resta dois caminhos, subir ou descer. Tinha pânico de imaginar uma descida que me levaria para a ponta de um tridente. Luna me contou outra versão dessa história. Para ela, o mundo dos vivos e dos mortos nunca foram separados, despedir da matéria significava reencontro. Pela primeira vez não tive medo, a morte deixou de ser um fim.
A cada página ela me apresentava outras possibilidades de existência. Meu corpo, que a mim sempre foi um estranho, ganhava outros sentidos. A chegada da primeira lua de Luna foi bem diferente da minha, em sua tribo era um momento de celebração, um ritual de passagem importante para as meninas. O corpo dava início à magia do sagrado feminino, o poder exclusivo de gerar outra vida. Aqui no Ocidente cortaram nosso elo com a natureza, desrespeitaram nosso ciclo, transformaram nosso útero em máquinas de procriação.
As narrativas de Luna, de maneira mágica e ao mesmo tempo estranha, faziam sentido para mim. A maternidade, a morte, a menarca, o corpo, iam deixando de me assustar. Até minha pele parda e meu cabelo ondulado entraram em harmonia. Eu atravessei tantas fronteiras que não percebi que nosso encontro estava chegando ao fim. Eu não queria me despedir de Luna, afinal tinha encontrado alguém no meu limbo. Comecei a ler lentamente para que nosso momento não acabasse, mas não adiantou! O tempo é sempre tão escorregadio, escapa das nossas mãos.
Com sentimento de despedida, cheguei na última página. Alinhado à direita, escrito em fonte Ariel Black, estava grafado:
“Nos chamam de esquisitas, quando na verdade, somos estrangeiras nessas terras que para nosso povo nunca foi mãe gentil”.
Patrícia Alves