Manifesto Periférico – Carolina de Souza
Ana Carolina de Souza Silva (Carolina de Souza) é graduada em Letras Português do
Brasil como segunda Língua (UnB), mestre em Linguística (UnB) e doutoranda em Linguística (UnB). É educadora, escritora e pensadora. A partir das temáticas de relações raciais, classe e gênero, desenvolve pesquisas voltadas às políticas linguísticas. Ademais, é ativista e dissemina trabalhos artísticos em escolas e espaços de cultura.
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O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Ano: 2020
O que é o movimento?
O que é o homem negro?
O que é o movimento do homem negro?
O que é o movimento negro do homem?
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Pede esmola no sinal por menos de um real. Nunca deixou a cabeça elevar.
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Engatinha o cano dentro da sua boca. Nunca foi visto chorar.
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Acorda cedo, dorme tarde. Nunca tem tempo pra mastigar.
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Cata papelão, empurra carrinho. Nunca viu uma criança por ele se encantar.
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Enxada em mãos, nos dedos os calos. Nunca parou para descansar.
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Sobe o morro e mata o irmão. Nunca teve chance de se explicar.
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Desce as calças, come geral. Nunca teve o direito de amar.
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Revira o lixo, pragueja o mundo. Nunca teve momento para militar.
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Prega o evangelho, convoca o rebanho. Nunca se encantou com Exu ao se manifestar.
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
O que é o movimento?
Nunca viu.
O que é o homem em movimento?
Nem comeu.
O que é o movimento negro para o homem em movimento?
Nunca ouviu falar.
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Um homem não é um HOMEM
O homem aparece na calçada do estabelecimento. Posso ver, ele ensaia uma entrada. ele revira panfletos no chão, olha para os lados, conversa consigo mesmo ao gesticular falsamente esse diálogo interno a fim de disfarçar sua existência. ele é invisível, mas posso vê-lo. O homem resolve entrar. Anda timidamente, alinha a postura, tenta inutilmente tirar a sujeira da calça em um gesto (des)preocupado com as mãos. ele se aproxima das pessoas que estão à porta e enverga o corpo como se estivesse se apresentando a autoridades militares. ele já não é mais invisível, mesmo que se esforce para manter seu superpoder. O homem se aproxima da porta e, delicadamente, coloca sua máscara. ele olha para dentro e desiste. Relaxa o corpo e sai gingando, resmungando consigo mesmo. ele tentou.
O HOMEM chega sem olhar quem também aguardava na fila. ELE se direciona ao homem que atende a todos no balcão. Não viu, mas há mulheres esperando. Elas têm diferentes cores e formas. Há também uma criança. Esse HOMEM chega e já saca perguntas de supetão, sem pedir licença ou questionar quem aguardava. SUAS perguntas são respondidas. ELE parece ter pressa. Ou simplesmente não entende como filas funcionam, afinal. Uma mulher O sinaliza que ELE deve ir ao final da fila. ELE vai embora sem o lanche, pois SEU tempo é precioso demais, e essas mulheres gostam de confusão.
O homem está quieto e sentado aguardando sua vez. ele quase não gesticula, nem observa demais. Um problema técnico e as atendentes perdem o controle da ordem dos atendimentos. –Quem tem a próxima senha? Uma MULHER questiona. –A minha é a 23, diz o homem calado. Ela o olha de cima a baixo e vira a cara. –Quem é o próximo? ele abaixa a cabeça e disfarça o constrangimento, picotando a senha em suas mãos.
Um HOMEM anda na feira. Não pede licença, pois todos LHE dão. Um outro vem apressado na direção contrária. Posso ver uma colisão. ele, já atrasado, passa sem desviar o caminho fazendo o IMPASSÁVEL abrir caminho. O HOMEM IMPASSÁVEL está parado, em choque, depois de tamanha deselegância.
Um homem entra no ônibus. Todos o olham assustados. ele fica sem graça, mas é bem- humorado. Gesticula-se lentamente, de forma que suas mãos estejam à vista de todos. ele sorri amarelo, anda mecanicamente desconjuntado. Senta-se em uma cadeira, bota o fone de ouvido e quer chorar. No lugar, ele ri da própria desgraça e faz piada no Instagram.
Um HOMEM aguarda na fila, assim como outras mães. As crianças brincam juntas enquanto a fila segue lentamente. ELE saca o celular e tira uma foto na frente de todos em plena luz do dia. –Que lindo! Posa pra ELE, filha. Todos riem felizes.
Um homem brincou ao fazer um gesto com as mãos e morreu espancado.
Um HOMEM não gosta de motoboys na porta de seu prédio e desceu armado a fim de estabelecer a higiene local.
Um homem previu que iria chover, mas morreu.
Um HOMEM disse que quando não falamos do problema, ele deixa de existir. Um HOMEM não é um HOMEM, é ENGENHEIRO CIVIL.
Um homem vende o almoço para comprar a janta. Um HOMEM come, é são e tem direitos.
Um homem não é um HOMEM.
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Preto que não pode errar
Preta raivosa. Eu fico assim. Revoltada. Incomodada.
Eu sou o lixo e agora vou falar! E numa boa…
“Eu sou o preto que não pode errar”.
“Professora Djamila, pode ensinar pra gente como evitar essas práticas racistas?” – diz o comentarista da Globo News.
Me pergunto… você quem criou isso! Como sou eu que tenho que te ensinar?!
É Roda Viva. Globo News. Programa da Fátima. Até Porta dos Fundos chamou o Yuri pra ensinar!
E todos têm nos convocado para falar de racismo, antirracismo, políticas de cotas e outros tantos assuntos que já temos discutido há tanto tempo. Mas, agora, nosso papel também é ensinar.
E continuo sendo “o preto que não pode errar”.
Se eu não ensino, tô errando, sendo escrota, sendo pedante. Sou eu quem não tô querendo ajudar a solucionar o problema criado por vocês!
Lança a pauta, chama o especialista. Não! Uma especialista, fica melhor na fita.
Fizemos nossa parte, rapaziada, teve debate e estudo batido.
“Não tem cachê, mas a gente deixa nossa marca, aquilomba!” Tá.
“Eu sou o preto que não pode errar”.
Aos olhos de tantos, Juliana Borges errou. Karol Conká também. Simonal morreu tentando provar inocência. Todos condenados.
Mas… “bora lá no programa dos branco fazer uma moral. Empretecer”. Deve ser…
“Fica difícil, né! No Brasil não tem um movimento articulado, como nos Estados Unidos. Como a gente faz pra chegar lá, Professora Djamila, explica pra gente!”
Ignoram o quilombo e a luta secular travada contra a escravidão. Assim fica mais fácil manter a opressão, a manutenção da subserviência. Porque a gente mesmo, não pensa, não é capaz de mudar.
“Eu sou o preto que não pode errar”.
Na moral, pretinhe, não fale mal dos teus. Não fale mais. Não dê uma rasteira no próprio pé. Os branco aplaudem de pé cada crítica que a gente faz.
Eles vão falar mal se não falamos. E se falamos também. Vão achar ruim se a gente se auto referencia, mas não desmamam do Marx e Freud pra falar de nós. Eles nunca pensaram em nós. E estão errados e equivocados sim!
“Michael, eles não ligam pra gente”.
Tem que ser muito demente pra acreditar que, se a gente ensinar, cêis vão deixar de nos usar.