Mulheres na Literatura (Curadoria) – Ciça Lessa
Na coluna Mulheres na Literatura (Curadoria), programada sempre para o último domingo de cada mês, Vanessa Franco realiza uma seleção de textos de uma autora, sejam poemas, contos ou crônicas, para revelar a vastidão estilística e temática do mundo literário produzido por mulheres.
Ciça Lessa é formada em Letras e mestre em Jornalismo pela USP. Fez especialização no Núcleo de Formação para Escritores do Instituto Superior Vera Cruz. Trabalhou em revistas para adolescentes e mulheres, escrevendo matérias de Comportamento e Sexualidade. Autora de livros de não-ficção, tem se dedicado atualmente à escrita literária. Em 2017, lançou Cacos: Momentos que Fi(n)cam (contos, editora Instante) e está escrevendo um romance autoficcional. Paralelamente, tem desenvolvido atividades para escritoras, como a Oficina A Mulher que se Escreve.
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Trecho de um romance em construção
A imagem que tenho de você grávida é estática e desbotada: uma foto em que você veste uma bata avermelhada estampada com joaninhas miúdas, e duas joaninhas grandonas pintadas em dois retalhos de tecido branco que se tornaram bolsos – uma moda que hoje soa um pouco ridícula, infantil demais. O retrato não extrai de mim nenhum momento vívido, mas é importante como uma estaca ao longo da estrada.
Não lembro também da morte da vovó: apenas uma ausência que começara bem antes, quando ela sofreu um derrame e nunca mais voltou a morar conosco. Foi muito depois que relacionei esse tempo de acontecimentos familiares intensos com um período em que meu pai esteve muito presente – você, esquelética, foi para algum lugar junto com Regina e a bebê recém-nascida. Só eu fiquei na casa da vila. Eu e papai.
Ele trouxe a Remington e passou a trabalhar ali na sala, eu por perto. Era um cara sério e compenetrado. Fazia anotações a mão com uma letra toda cheia de voltinhas, como se fosse um fio de telefone enrodilhado como mola, formando as palavras que nunca ficavam completamente soltas umas das outras.
Depois sentava à máquina e copiava com toda atenção. Pedia para eu não atrapalhar.
Nunca me ocorreu desobedecer ao meu pai quando eu era menina. Nem consigo imaginar que fazia alguma coisa enquanto ele escrevia os pareceres – que era o que eu sabia sobre o que meu pai fazia. Ele escrevia o que achava das coisas depois de ler e pensar.
Fiquei logo fascinada pelas pequenas hastes de metal que subiam e desciam carimbando o papel. Depois que ele largava a máquina e passava a pesquisar nos livros e nos maços de papéis presos a umas capas de cores esmaecidas, umas puxando para o rosa, outras para um tom azulado ou verde pálido, eu supunha que era a minha vez. Meu pai, desde o princípio, deixara claro que a máquina não era brinquedo. Então entramos em um jogo bem nosso: inventei algo que ele não ia negar. Posso copiar uma história? Sou capaz de imaginar a cara de orgulho dele – sempre gostou quando eu arranjava um jeito esperto de agir dentro das suas regras, algo que depois, muito depois, passei a chamar de obediência inteligente.
Passei outras tardes – ou noites? – ali rondando papai. Foi quando fiz as certidões de nascimento de minhas bonecas, sugestão dele provavelmente. Receberam nome, ganharam pai e mãe cada uma das minhas bonecas. Só um detalhe era sempre igual: todas foram registradas no subdistrito de Cerqueira César ali mesmo onde eu nasci.
Deve ter sido nessa época que papai me pediu pela primeira vez: seja compreensiva com sua mãe. Me ajude a cuidar dela.