Uma memória e três poemas de Natália Salomé Poubel
Natália Salomé Poubel é feminista, latino-americana, professora e doutora em literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da UFMT. Estuda a poesia escrita por mulheres e trabalha com crítica literária feminista. Interessa-se sobre a história das mulheres, poesia do corpo, poesia erótica e literatura LGBTQI+.
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Fumaça
Cuiabá amanheceu cinza, matando as possibilidades de existência. Tem fumaça em todos os lugares: debaixo da cama, no céu, na comida, no horizonte, entre as minhas pernas, no vãozinho entre os lábios se tocando. Fecho os olhos com força para ver um mundo diferente quando abrir os olhos. Não adianta. Sinto o suor escorrer de quando pequena, deitada no sofá de casa com minhas irmãs e irmão, morria de calor. O sofá era desses materiais laváveis, ou seja, o suor ficava impregnado ali, porque não é como se a gente lavasse sempre, né. Eu repetia para mim mesma que essa era uma sensação horrorosa e que eu não a viveria quando crescesse. A boa da verdade é que não vivo, mas vivo algo muito pior. Vivo essa morte lenta causada pela fumaça. Aí eu fecho os olhos e penso: por que eu ainda moro aqui? E lembro: minha mãe, minhas crianças. Viver longe é bem difícil, meu coração vivia apertado, mas também era feliz. Como boa libriana fico equilibrando os pratos da balança. Ou equilibrando a vida na corda-bamba. Fecho os olhos mais uma vez. Penso poesia.
*
Chora Chapada
Pisoteia Poconé
Os olhos da mãe d’água
vazios de pranto
percorrem subterrâneos caminhos
fogem da seca
abandonam o barco
que abandonado jazia
na bacia infinita
do pantanal.
Adormecido o pantaneiro
na seca a garganta rasga
na farpa do arame
cindindo ao meio
e caminhando molhado
de sangue, não de água
porque pantaneiro é ser místico
das imagens do passado
de água em abundância
– ainda que na cheia ressecado.
Pantaneiro solitário
na terra que racha pelo sol
viu sulista chegar em peso
e tomar seu arrebol
o céu bonito de onde brota a água
hoje some
não se vê
sonhava de ganância o homem
que faz a terra, hoje, desaparecer.
não houve água
só fogo e cerrado
que esperam a primavera
ver a água renascer
pantaneiro volta pra sua canoa
na travessia do luar
invoca a mãe d’água e
canta-canoa
esperando o sono chegar.
*
Nós que ainda somos fluidas
de água feitas
de sangue em ciclos
com foice
machado
ou com salto
pisando em brasas adormecidas
verteremos nossa fertilidade
chamando a água
invocando o espírito
nós que de desejo nos tornamos
mulheres
mulheres enfurecidas
nos juntamos às de ciclos
em carícias e desvios