“Nenhuma poesia” de Diego Pansani: uma resenha de Arthur Lungov
Arthur Lungov é poeta e editor de poesia da revista Lavoura. É autor do Corpos (Quelônio, 2019), obra que foi contemplada pelo 2° Edital de Publicação de Livros da Cidade de São Paulo; e da plaquete Anticanções (Sebastião Grifo, 2019). Foi publicado em coletâneas e revistas literárias. Email para contato: albugelli@gmail.com
Diego Pansani é poeta. Publicou seu primeiro livro, O Amador, em 2018 pela Editora Urutau. Seu segundo livro – Nenhuma poesia (2019, 7Letras) – foi contemplado pelo ProAC-Poesia. Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Escamandro, Arcádia, Algo deu errado.
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Agora pós-tudo
Em evento promovido ano passado pela Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, comemorando os 70 anos de produção poética de Augusto de Campos, os poetas e pesquisadores Tarso de Melo e Eduardo Sterzi discutiam como o principal legado do concretista para a contemporaneidade estaria em seu pensamento radical sobre questões de poesia e cultura, e não em seus poemas. Sua influência se veria muito mais nos modos em que passamos a ver o texto poético (e os procedimentos que levam à sua construção), do que em produções que continuassem suas pesquisas tipográficas, ideogrâmicas e composicionais.[1] Nenhuma poesia (2019, 7Letras), segundo livro do campinense Diego Pansani, um dos projetos contemplados pelo PRoAC de 2018, ao mesmo tempo em que incorpora alguns métodos composicionais trazidos por Augusto (ou resgatados por ele), amplia sua tradição de ser uma obra de projetos, e não propriamente de textos, e nos faz pensar o legado das vanguardas artísticas, em um momento em que elas parecem ressurgir timidamente.
Formado quase exclusivamente por procedimentos que chamamos de vanguarda (ready-mades, colagens, recortes, paródias, plágios, deslocamentos, repetições, fraudes etc.), a obra de Pansani anuncia em seu título aquilo que pretende apresentar ao leitor: não há poesia no livro. Ao menos, não há nenhuma poesia que se assemelhe ao que nos acostumamos a pensar enquanto poesia[2]. E tanto melhor, uma vez que o (ao menos premeditado) choque de nos depararmos com emojis, printscreens de celular e links de Wikipedia não pode deixar de nos fazer repensar o que entendemos pelo gênero poético. Ou sobre qualquer gênero literário, na verdade.
A obra já faz parte de um esforço recente (ainda que não generalizado) de resgate desses procedimentos vanguardistas na poesia brasileira, em especialmente aqueles que envolvem a colagem, o deslocamento, a transcrição e demais formas composicionais que envolvam a criação de uma obra pela reunião e documentação de palavras alheias. É o que se convencionou a chamar de “escrita não-original”[3], movimento que pode ter suas origens mais recentes traçadas até o poeta norte-americano Kenneth Goldsmith, e seus experimentos com a transcrição de boletins de clima, narrações de partidas de beisebol, e edições inteiras de jornais vespertinos. No Brasil, podemos citar nomes como Marília Garcia, Leonardo Gandolfi, Angélica Freitas, e Alberto Pucheu, se quisermos apenas alguns exemplos de obras poéticas que se utilizam destes meios.
Longe, então, de pretender originalidade na utilização de procedimentos que são tão antigos quanto o modernismo[4], e que têm exemplos recentes na poesia brasileira, Pansani utiliza esses mesmos procedimentos (além de outros, como a paródia) para discursar sobre a tradição vanguardista da qual faz parte, criticando-a enquanto esforço canonizante exclusivista, que reivindica para si (de forma paradoxal) a autoria de textos compostos a partir de material alheio. No contraesforço dessa cristalização daquilo que por excelência é inquieto, Diego trabalha para banalizar esses procedimentos, mostrando-os enquanto elementos gerais de formação da cultura, e não mais como instrumentos exclusivos do experimentalismo artístico arrojado (algum dia foram?), e de seus patrões, sempre iguais. O autor lança mão dos meios vanguardistas mais sofisticados para combater (ou ao menos expor ao ridículo) sua própria (pretensa) sofisticação.
Tomem-se como exemplo três textos de Nenhuma poesia: “Tartaruga, lira, tripas, chelys, guitarra, alaúde, pêra, ready-made”, em que traça a origem do violão através de uma série de apropriações por diversos povos de instrumentos já existentes; “Esopo”, em que transpõe uma corrente de WhatsApp que narra uma pequena fábula, em uma versão “grupo de família” dos contos do fabulista grego; e “Plágio”, em que conta a história da invenção do telefone, e das batalhas em torno das patentes da invenção. Todos trabalham na mesma direção: nos mostram a série de apropriações, cópias, roubos e fraudes que são parte rotineira da formação cultural de qualquer civilização, nivelando grandes invenções tecnológicas a criações culturais, e ambas ao que pensamos como o mais baixo estrato da capacidade narrativa contemporânea: a corrente de Zap, com seus erros gramaticais, sua redundância, sua previsibilidade, e sua cafonice. Todos produtos de um mesmo caldeirão, que não distingue, nem sequer filtra, mas mescla, rearranja e reinventa: a cultura. E a cultura com “c” minúsculo, não a Cultura: o caldo compartilhado e inescapável, do qual todos somos produtores e consumidores, ainda que não o queiramos.
Sua poética poderia ser sintetizada perfeitamente no poema “Biblioteca central e a vanguarda”, em que replica uma pesquisa (não sabemos se real ou fictícia, e pouco nos importa) feita no acervo de uma biblioteca, em que o único título encontrado é Teoria da vanguarda, de Peter Bürger, texto seminal dos estudos das correntes artísticas do começo do século XX. Os outros dois termos buscados e não encontrados são Octavia Butler (escritora afro-americana de ficção científica, que tratou de forma pioneira temas como racismo e desigualdade de gênero nesse estilo ficcional) e Conceição Evaristo (que creio já dispensar apresentações a esse ponto, a contrapelo do que acredita a ABL).
É no combate ao pensamento acadêmico tradicional, que cristaliza na história da literatura a vanguarda, transformando-a em parte integrante do Estabelecimento Arte (e portanto sugando suas potencialidades subversivas), que Diego encontra terreno fértil para demonstrar de forma clara e incontornável que quem dita o que é ou não arte, o que é ou não relevante, o que é ou não poesia é sempre motivado por (ou tem interesse em) mecanismos de exclusão, de controle e de poder. E o faz usando exatamente métodos provenientes dessas vanguardas, reinstituindo seu elemento questionador, expondo as estruturas da própria obra e de seus pares. E, também, do país: a primeira série de poemas, com trechos de diálogos, mensagens de Telegram e grampos dos protagonistas da crise democrática que vivemos nos últimos anos, expõe não apenas o absurdo de nossa situação, como a ética crítica que Diego acredita intrinsicamente ligada à experimentação estética.
Ainda assim, intriga pensar quanto estranhamento esses textos[5], formados por fontes que convencionamos em classificar como “não literárias”, devem causar em leitores de poesia brasileira contemporânea. Sinal claro de que, ainda que o autor tenha tanto trabalho em nos mostrar o quão comuns (e cruciais) são esses métodos composicionais, não apenas nessa própria poesia brasileira contemporânea, mas na cultura em geral, ainda estamos imersos em um lamaçal de tradicionalismo que exige da obra poética conceitos tão vagos quanto “originalidade”, “gênio” e “beleza”.
É inegável, no entanto, que os textos adquirem a força que têm pelo mosaico que compõe: são por estarem em um livro que escancara dessa forma suas referências, seus propósitos, seus questionamentos e suas limitações, se relacionando e se complementando, que podemos extrair a crítica ao próprio livro, e à sua tradição, que o autor faz. É preciso ler os textos menos enquanto poesia, talvez, e mais enquanto partes de um ensaio sobre o lugar, o propósito, e os objetivos da escrita poética. Um livro que é antes projeto, antes questão, do que texto, no sentido de ter sua potência contida antes na poética que cria do que nos poemas em si.
A pergunta clássica, “o que fazer em arte depois das vanguardas?”, parece permear o livro tanto quanto permeia toda a produção artística contemporânea. Como ir além, como ser mais radical do que movimentos que pregaram não apenas a produção absolutamente livre, mas a produção que não produz, que antes recolhe o que já existe? E aqui ela é respondida de forma sóbria, pois crítica: o próximo passo é pensar essas vanguardas. Entender sua radicalidade para perceber o quão pouco de radical elas realmente são, e o quão radical elas ainda assim continuam sendo. Jamais considerá-las absolutas, esgotadas, datadas. Vê-las enquanto potencialidade para critica-las, renova-las, transformá-las em poesia, arte nova, relevante, reflexo e molde de uma sociedade que já não lida com informação da mesma maneira que a sociedade que as criaram, e que por isso não é mais representada por elas. Agora, mais de 100 anos depois do surgimento dessas correntes, quando tudo já foi feito, pós-tudo, voltar ao tudo. Ampliar o tudo. Entender o tudo enquanto parte. A parte enquanto destroço. Recolher os destroços. Fazer tudo novamente, mas de outra forma. Transformar o todo em parte de novo. E assim por diante.
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[1] Afinal, a demanda de poemas contemporâneos que partissem dessas bases já está muito bem suprida pela conta de Instagram do poeta octagenário (@poetamenos), objeto de matéria do Suplemento Pernambuco em seu nº 159 (maio/2019).
[2] Na formação romântica que nos faz associar o poema a uma auto-expressão individualista e infalível, fermento tão pernicioso da literatura radicalmente testemunhal (e apenas isso) que inunda os catálogos das pequenas editoras de poesia hoje.
[3] Termo que tem sua origem no livro da pesquisadora Marjorie Perloff O gênio não original: Poesia por outros meios no novo século (2013, UFMG), e que em Pindorama foi consagrado pelo livro do pesquisador Leonardo Villa-Forte Escrever sem escrever: Literatura e apropriação no século XXI (2019, Relicário).
[4] Ainda mais antigos, se considerarmos os plágios de Gregório de Matos. Ainda que seja necessário fazer a distinção importante de, no barroco, o plágio não ser um procedimento exatamente distinto da composição tradicional.
[5] São poemas? São poemas tanto quanto os excertos retirados e quebrados da Carta de Caminha por Oswald de Andrade são poemas. Poderiam ter designação diversa, e seriam então outra coisa. Importa classifica-los? Dificilmente.
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