Ninguém é branco no Brasil? Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada à professora doutora do Colégio Pedro II e poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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Ano passado, em um evento acadêmico sobre autoria negra, assisti à apresentação de uma professora sobre o livro Passing, de Nella Larsen, publicado em 1928. Fiquei curiosa quando soube que a trama envolvia mulheres negras de pele clara (o que pode ser chamado de pardas no Brasil) que se passavam por brancas. Na verdade, ambas tinham “passabilidade”, mas apenas uma delas vivia como mulher branca, escondendo sua identidade racial até mesmo do marido. Este ano tive notícia da publicação da tradução de Passing, aliás, duas traduções, por editoras diferentes. A que já está disponível recebeu o título de Identidade, já a outra editora escolheu Passando-se, buscando mais proximidade com o título original.
Como eu li Identidade, fiquei pensando no que essa palavra tem trazido para a sociedade racializada e racista que, quase cem anos depois, tem a oportunidade de ler a obra de Larsen em português. Identidade, nesse caso, remete à identidade racial. No contexto estadunidense, a questão do sangue é crucial para determinar a raça, assim as personagens Claire e Irene são apresentadas como negras apesar de a miscigenação já ter apagado a maior parte dos traços físicos que remetem à ancestralidade africana. Irene, porém, mantém e valoriza sua identidade negra, apesar de se passar por branca em ambientes em que pessoas negras – visível e obviamente negras – seriam hostilizadas e impedidas de ter acesso. Ao mesmo tempo, nessa trama, a palavra identidade diz respeito à identidade falsa de Claire, à sua adesão a uma identidade branca. Ao longo da narrativa, ela vai se descolando dessa identidade forjada e aos poucos buscando aderir à identidade negra. Ela força a retomada da amizade com Irene, passando a frequentar eventos da comunidade negra, ocupando ali um lugar estranho e desconfortável que tira o conforto também de Irene.
Em Irene reside outra contradição da identidade. Ao mesmo tempo que se sente agredida pelo racismo do marido de Claire (que não sabe que está entre mulheres negras), ela guarda o segredo da amiga em lealdade à raça, mas também com certa admiração à beleza e à ousadia de Claire, além de uma identificação em relação a essa capacidade de passar por branca que as duas compartilham.
A expressão “passabilidade”, aliás, passou a ser empregada no Brasil tanto para pessoas não brancas que se aproximam do padrão branco, como para pessoas transgêneras cuja aparência se aproxima muito dos padrões de feminilidade ou masculinidade vigentes na sociedade hoje. Em qualquer dos casos, assim como no romance de Nella Larsen, a qualquer momento a pessoa pode ser “desmascarada” e ter sua identidade “real” revelada. Não é à toa que o marido de Claire ironiza a facilidade que a esposa tem de ficar com o tom de pele mais escuro no verão. De certa forma ele vê na esposa algo que a aproxima da negritude, mas nega para si mesmo porque seu racismo o impediria de se casar com uma mulher afrodescendente.
No Brasil, o fenótipo guia as avaliações raciais. Ambiguidades raciais, negação da origem negra, declaração racial fraudulenta são elementos que tornam a discussão em torno da declaração racial extremamente complexa. Esse cenário torna também a discussão sobre o racismo muito mais intrincada.
O branco brasileiro pratica o tipo de racismo que talvez seja o mais perverso, pois o esconde sob suas origens miscigenadas. Ninguém é branco quando é acusado de racismo, há sempre uma bisavó preta, um cabelo “ruim”, um “pé na cozinha” que aparece no argumento, tornando-o ainda mais racista. O racista semelhante ao marido da personagem Claire, que diz abertamente que odeia negros, se transforma no entusiasta da brasilidade morena, tira do bolso teste de DNA que comprova sua composição 10% africana, posa na foto com o amigo negro, joga flores para iemanjá na virada do ano.
Passing é um livro sobre a busca tardia pelo convívio em comunidade após uma vida de negação das origens negras. Claire evita a encruzilhada da miscigenação por acreditar que há um caminho mais fácil. Este a leva para um destino trágico. Dadas as devidas distâncias temporais e ideológicas, vemos como o racismo brasileiro se dá também por uma tentativa de negação, ou por uma afirmação que se faz negando. O mesmo brasileiro que quer ter passabilidade, porque morre de medo de ser confundido com negro e ser tratado como tal, evoca a tradição da união das raças quando conveniente, jura que não vê cor enquanto reza para que o filho (que ainda vai nascer) não puxe o nariz do avô negro. Nesse percurso ficam sem opção, sem poder se passar por nada diferente daquilo que são, pessoas cujas características africanas se imprimem em seu corpo e também em suas formas de viver e existir cercadas por brancos miscigenados e negros passáveis.