Nostalgia do futuro – Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada a poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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Lendo os ensaios do livro Não vão nos matar agora, de Jota Mombaça (Ed. Cobogó, 2021), tive revelações, ideias, insights sobre uma fantasia que ronda minha cabeça desde o início da pandemia.
Ando pensando muito no futuro. Não num futuro pós-pandêmico, nem no ano que vem ou nas próximas eleições. Tenho pensado em um futuro mais distante, em que eu sou bem velha. Não se trata de um pensamento otimista sobre um mundo melhor. Nesse pensamento, que parece muito com uma memória, o apocalipse ainda não passou, estamos vivendo ainda o horror que se iniciou há mais de quinhentos anos. O tempo para mim tem sido uma instância bagunçada, desordenada. Vejo essa mulher idosa que se lembra de tempos anteriores, inclusive os que ainda não vivi.
O livro de Jota me trouxe uma pista. Essa nostalgia do futuro é uma espécie de rota de fuga a ser traçada. A negação da captura pelo momento presente. Uma imaginação que não pode ser interrompida, porque está fora do tempo linear e, portanto, das violências que invadem o agora.
Nesse tempo em que me projeto, sei que não estarei livre das implicações geradas por minhas posições no mundo. Continuarei deslocada e inadequada aos olhos da colonialidade que insistirá em me assediar com delírios brancos e heteronormativos. No entanto a elaboração dessas rotas e estratégias me serão úteis no atravessar do tempo e na sobrevivência.
Essa pessoa-eu do futuro, que será muito velha, não me sussurra respostas. Ela não as tem. Desde agora eu aprendi que não é meu trabalho encontrar respostas. Meu trabalho é perguntar por quê, é sacudir o mundo pela gola da camisa e perguntar o que você vai fazer, até que eu fique cansada e me recolha.
Glória Anzaldúa diz que nós que estão fora das posições de dominação – pessoas não-brancas, pessoas LGBTQIAP+ – entramos nos lugares como mulas de Tróia. Chegamos para alterar o sistema com nossa diferença e com nossa exigência de mudança. Mas, para isso, precisamos fazer o trabalho dos outros. Ensinar, selecionar, tirar o alimento mastigado da boca e oferecer. Precisamos caminhar léguas, correr, levantar de todas as quedas. Com isso vivemos a dialética entre fazer ou não fazer esse trabalho. Se fazemos, somos exploradas; se não fazemos, não haverá quem o faça. Cabe a nós criar um limite entre o mundo e nosso corpo atacável para que esse corpo seja discurso e seja também prazer, alento e descanso.
Queremos implodir as estruturas do mundo que conhecemos, para isso não podemos passar todo nosso tempo dando de comer a quem se põe a desarmar nossas bombas. Temos consciência do imperativo da luta, mas sempre haverá passos de dança. Precisamos agir, mas deixemos que em alguns momentos vejam nossos braços cruzados em recusa a fazer o serviço acumulado.
Talvez minha fantasia de um tempo futuro em que estarei velha seja a imaginação do recolhimento, do descanso, quando olharei o céu, cuidarei das plantas e acariciarei os gatos. Não sei ao certo, mas acho que essa é uma imaginação radical da vida neste momento em que a melhor proposta que temos é seguir em frente.