Nota de repúdio ao termo “diversidade” – Por Sofia Dolabela
SOLTA O VELCRO é a coluna produzida pela escritora mineira Sofia Dolabela, toda primeira segunda-feira do mês, em que o debate será em torno do tema literatura lésbica — nacional ou não. Aqui, o foco é a produção literária por mulheres lésbicas ou, simplesmente, obras cujas personagens vivenciam a lesbianidade em particular ou o relacionamento entre mulheres em geral. Mas o que importa de verdade é levantar dúvidas e debates muito mais do que trazer respostas ou opiniões formadas e, claro, fazer isso coletivamente, sem medo, sem censura e sem vontade alguma de estabelecer qualquer verdade. Vamos?
Sofia Dolabela é escritora, mineira de Belo Horizonte e lésbica. Sempre teve a escrita como uma necessidade visceral e que acabou se tornando ainda mais urgente depois da compreensão de que ser uma mulher que ama outras faz muita diferença em sua caminhada por esse mundo. Com o objetivo de tornar a literatura nacional mais representativa e de fazer com que outras mulheres como ela conseguissem enxergar a si mesmas na arte, fundou seu projeto literário Em Caso de Urgência (@emcasodeurgencia no Instagram), onde publica escritos autorais que falam sobre a vivência da lesbianidade, com todos os seus prazeres e dores. Além disso, é mediadora no coletivo Clube Lesbos BH.
Para conhecer mais sobre a autora, acompanhe seu trabalho no projeto literário Em Caso de Urgência no Instagram.
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Nota de repúdio ao termo “diversidade”
“Literatura lésbica” — a temática que deve guiar essa coluna — é um termo bastante amplo. O que isso abrange, exatamente? Livros escritos por mulheres lésbicas? Livros cujas personagens são, declaradamente, lésbicas, ou seja, em que essa palavra que enche a boca ao ser dita e atinge o ouvinte como um tapa no rosto (L É S B I C A) está bem marcada nas páginas, a tinta preta eternizada no papel para que não restem dúvidas? Ou a mera presença de uma personagem que seja mulher e se relacione com outras ao longo do romance já torna o título digno de ser debatido nesta categoria?
Discutir literatura lésbica é se jogar, sem medo, em um labirinto complexo de identidades, dúvidas e fronteiras que são assuntos de conversas de bar e teses acadêmicas desde muito tempo. A minha intenção por aqui não é entrar neste tipo de debate. Para simplificar: trarei para este espaço reflexões e questionamentos relativos a esse mundo plural da literatura que envolve mulheres que se relacionam com outras, seja nas páginas de algum livro de ficção ou por trás delas. No entanto, é importante que esteja esclarecido o lugar a partir do qual eu falo: sou uma escritora lésbica, branca e latinoamericana — e isso pode fazer toda a diferença. Afinal, não sou nenhum porta-voz dessa coletividade; falo de um lugar bem único, venho com bagagens e privilégios, sou toda parcial (e tá tudo bem).
Talvez isso seja óbvio para muita gente, mas é preciso um esforço consciente para não considerar “mulheres lésbicas” como uma categoria universal. Ultimamente, a sigla LGBTQIA+ aparece tão casualmente nos mais variados espaços que as pessoas deixam de prestar atenção na quantidade de letras que compõem essa sigla. É mais difícil ainda raciocinar que, mesmo estando atento às letras individualmente, cada uma delas já é imensa por si só. O “L” é composto por mulheres tão profundamente distintas entre si que nos reduzir à única característica que temos em comum — a nossa sexualidade — é um erro tremendo.
O que nos leva a outro ponto: a maior parte das pessoas enxerga um grande progresso no mundo literário, ao observar que cada vez mais livros com protagonistas da comunidade LGBTQIA+ estão tendo um relativo sucesso. Observando mais de perto, este sucesso representa, exatamente, à quem? Na minha adolescência, um pouco depois de me descobrir não-heterossexual, passei algum tempo muitíssimo empolgada quando descobria livros com protagonistas “como eu”, até o momento em que reparei que todos eles eram homens, gays, brancos e estadunidenses. O que eu tenho em comum com eles, no fim das contas? Em termos identitários, quase nada.
É assustador pensar que consigo contar nos dedos de uma mão as vezes enxerguei a mim mesma nas páginas de algum livro. É bem difícil que uma história que fale da vivência de uma mulher que se relaciona exclusivamente com outras chegue às prateleiras de grandes livrarias. Imagine, então, pensar sobre isso adicionando a questão racial: das poucas histórias do tipo que atingem uma boa visibilidade, quantas você acha que representam mulheres negras, indígenas ou amarelas? Quantas dão voz à protagonistas gordas ou com deficiência? Que tipo de arte é essa que não imita a vida?
É difícil engolir o discurso de “diversidade” na literatura quando esse é só um termo vazio que esconde, por trás de histórias que não provocam em quase nada o público, vozes de mulheres reais, complexas e que têm coisas muito mais interessantes para contar do que a velha fórmula da jornada de um herói sem graça — nada contra a técnica, tudo contra o ctrl c, ctrl v dos mocinhos como Luke Skywalker, Harry Potter e quem-será-o-próximo-menino-branco-órfão a estrelar um best seller?
Se essas histórias excepcionais escritas ou contadas a partir do ponto de vista de mulheres lésbicas diversas não chegam ao grande público, para ter acesso a uma literatura minimamente representativa é preciso se esforçar. Ir atrás por conta própria. E aí um universo muuuuuito mais interessante do que as narrativas monótonas que nos acostumamos a consumir se abre bem na nossa frente. Por isso, faço uma promessa: toda vez que nos encontrarmos por aqui, vou trazer uma sugestão de um livro que eu sugiro fortemente que você leia.
Então, já que estamos falando sobre coletividades serem compostas por uma pluralidade infinita de indivíduos, a indicação do mês é o livro “Garota, Mulher e Outras”, da Bernardine Evaristo, que ganhou o Booker Prize de 2019 (o prêmio mais importante da literatura inglesa) e trata de forma brilhante a complexidade das identidades através do ponto de vista de 12 mulheres imigrantes ou filhas de imigrantes que vivem na Inglaterra pós-Brexit.
Em meio à essa viagem entre os versos-prosa brilhantes da autora (já aviso, isso vai parecer clichê), me senti meio que num processo de expansão da mente. Na literatura, há essa regra de que o escritor deve mostrar os fatos, não explicá-los: o meio termo perfeito entre o implícito e o explícito para que a mensagem seja transmitida da melhor forma. Bernardine demonstra as complexidades e interseções do que é ser mulher com sutileza e, por isso mesmo, deixa entalada na nossa garganta essa percepção sobre nós mesmas e sobre o mundo para digerirmos nas semanas após a leitura.
Vai lá. Não se esqueça de mastigar bem devagar.