Notas de A para B – Por Hugo Lorenzetti Neto
Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).
***
Notas de A para B
Cheguei a Angola. Escolhi a segunda impressão: vê-se que a falta de árvores ou os prédios malcuidados ainda expelem beleza. Parece uma cidade em que as coisas se escondem da secura do ar – essa que traz o pôr do sol rosado das areias da província de Namibe para a Baía. Tentei escrever durante o mês de janeiro até agora sobre transitar entre lá, o Recife, e aqui: o imediato de estar não se presta à escrita.
Presta-se à anotação: gostaria de escrever isso e aquilo.
Imaginei (e anotei no caderno) como seria escrever durante um acidente de trem – para usar o exemplo de Freud em Moisés e o Monoteísmo. Enquanto as ferragens se torcem e você sobrevive, você observa e escreve o exato momento em que um pedaço do compartimento de bagagens parte de seu lugar para decepar o pescoço de teu vizinho de assento e o sangue espirra. Quem escreve sobre o esmagamento enquanto ele ocorre? O que acontece na hora não é o que rasga: sobreviver, sim. Sobreviver ao trauma – como seguimos sobrevivendo a uma peste ainda não terminada – é a ferida, e sair, e caminhar para fora.
E eu caminhei para fora do Brasil, e o Brasil é uma guerra.
Confesso que preciso de alguns dias para que minha voz – escrita e falada – encontre o que fazer, descubra como ser. E parece que o fragmento se torna cada vez mais importante – inclusive no exercício de tradução: fragmentar, mas não em frases – publiquei um trecho curto de Virginia Woolf nas minhas redes, algo que parece não dizer muito, sem frase de efeito – a gente anda lendo card de Instagram demais, Virginias Woolfs reduzidas a life coach, dizendo “vai, se expressa, mulé, seje empoderada”. E foi livraria ou revista literária que publicou. Nossa, isso me irrita tanto.
Coloquei isto no Instagram, para homenagear Woolf em seu 140º aniversário:
“Uma coisa que importava havia; uma coisa, emaranhada em burburinho, desfigurada, obscurecida em sua própria vida, que se condensava em corrupção, mentira e fofoca. Isso ele preservara. A morte era uma afronta. A morte era uma tentativa de comunicar; pessoas sentindo a impossibilidade de se alcançar o centro que, misticamente, os evadia; proximidades se afastavam; o êxtase se esmaecia, estava-se só. Havia um abraço na morte.
Mas esse jovem que tinha se matado – saltara segurando seu tesouro? “Se for para morrer agora, que seja o agora mais feliz”, ela se dissera uma vez, vestida de branco.”
Que é tradução de:
“A thing there was that mattered; a thing, wreathed about with chatter, defaced, obscured in her own life, let drop every day in corruption, lies, chatter. This he had preserved. Death was defiance. Death was an attempt to communicate; people feeling the impossibility of reaching the centre which, mystically, evaded them; closeness drew apart; rapture faded, one was alone. There was an embrace in death.
But this young man who had killed himself – had he plunged holding his treasure? “If it were now to die, ‘twere now to be most happy,” she had said to herself once, coming down in white.”
Acho que nunca vou acertar traduzindo Virginia Woolf e aí ficou assim, mais ou menos, porque já mudei coisa de novo – por exemplo tirei um verbo descer do final, porque o coming down pode ser the aisle e de branco, in white: ou seja, casando-se. Ou não. Com o movimento, em português, Clarissa desce uma escada ou a ladeira ou sabe-se mais o quê – embora ela esteja numa festa, pensando mal dos Bradshaw, que tiveram de trazer o assunto do suicídio para sua festa. Nossas noivas andam em linha reta, sobre o tapete, e não para baixo. Aliás, acho bonito que o altar esteja embaixo (no inferno). Se ela desce de branco em português, a igreja some. O mais que perfeito, que joga a narrativa e os próprios pensamentos de Clarissa ao passado antes da festa, é o outro charme do fragmento: é bom ler e traduzir quem escreve mesmo – a gente anda lendo tanta porcaria transparente, sem camadas, sem opacidades e sem resistência à leitura: a gente sempre sabe tudo nesses textos. Não tudo, não estou dizendo que a Literatura está perdida. Só tem muita coisa besta. A diferença entre comida e requeijão. Requeijão é besta, nunca entendi. Mas existe comida ainda – vai acabando com o avanço do neoliberalismo, mas tem. As criancinhas de hoje que no futuro talvez tenham de comer farinha láctea com leite ninho e pronto, coitadas. Tudo da Nestlé. Odeio a Nestlé.
Mas é o fim do mundo e a morte, e embora esteja em Luanda faz seis dias quando sair esta coluna, ainda estou morrendo em Recife, parece. Não é só isso, também estou escrevendo algo nessa linha do luto, sobretudo o que atrapalha a festa – que talvez, algumas vezes, precise ser atrapalhada.
Para não ficar nesse fim todo e pensar em começos, também escolhi mostrar as anotações de Victor Segalen. Era médico da marinha, escritor, etnógrafo, arqueólogo, poeta, crítico literário e professor de pilates e zumba. Um viajante, andou tudo por aí na sua vida curta. Escreveu o Ensaio sobre o Exotismo, de onde tirei o excerto que segue, tendo como procedimento uma colagem extensa de textos – notas de diário, pequenos ensaios e cartas. Estou traduzindo lentamente esse livro todo, porque me interessa ver o quanto Segalen já coloca, no auge da valorização do exotismo, algumas questões contra o próprio exotismo – e ele pede algo como a reversão: exótico é o estrangeiro, não a Ásia, e ele perturba com sua estranheza, e a diferença se lê na perturbação. Não é uma perfeita descolonização (e nem essa imediata, que parece que as pessoas passam descolonizer em spray e a coisa se descoloniza – perfeita na cabeça de quem a faz). É ambivalente. Muda de ideia no meio. Tem coisas muito diferentes de seus contemporâneos, como o pintor Paul Gauguin, que ele começa admirando e depois denuncia. Dialético.
Coisas dialéticas são tão gostosas.
(Eu perturbo algumas ruas de Luanda já, sem querer perturbar)
A primeira página do Ensaio sobre o Exotismo são desejos de escrita, pensamentos para fazer – essa escrita é muito interessante, porque ela permeia o resto da obra. Inspira o rabisco, a anotação da obra desejada e feita de pedaços, daquilo que se consegue dizer em um dado momento. O trecho não vai esclarecer muito a obra, mas ao mesmo tempo a apresenta e se repete bastante dentro dela. Primeiro em francês:
En vue de Java, octobre 1904.
Écrire un livre sur l’Exotisme. Bernardin de Saint-Pierre – Chateaubriand – Marco Polo l’initiateur – Loti.
Y mettre le moins de citations possible.
Argument : Parallélisme entre le recul dans le passé (Historicisme) et le lointain dans l’espace (Exotisme).
Étudier chacun des sens dans ses rapports avec l’exotisme : la vue, les ciels. L’ouïe : musiques exotiques. L’odorat, surtout. Le goût et le toucher nuls.
L’Exotisme sexuel.
La vue. Les peintres d’exotisme. Le peintre romancier (Fromentin). Gauguin.
La sensation d’exotisme : surprise. Son émoussement rapide.
L’exotisme est volontiers « tropical ». Cocotiers et ciels torrides.
Peu d’exotisme polaire.
La géologie. Voir livre Ponfilly.
E agora a tradução:
Vista de Java, outubro de 1904.
Escrever um livro sobre o Exotismo. Bernardin de Saint-Pierre – Chateaubriand – Marco Polo, o iniciador – Loti.
Incluir o menor número de citações possível.
Argumento: Paralelismo entre a volta ao passado (Historicismo) e a distância no espaço (Exotismo).
Estudar cada um dos sentidos em sua relação com o exotismo: a visão, os céus. Audição: música exótica. O olfato, principalmente. O paladar e o tato inúteis.
O Exotismo sexual.
A visão. Os pintores do exotismo. O pintor romancista (Fromentin). Gauguin.
A sensação de exotismo: surpresa. Seu embotamento rápido.
O exotismo é deliberadamente “tropical”. Coqueiros e céus tórridos.
Pouco exotismo polar.
Geologia. Ver o livro de Ponfilly.
Vou guardar mais informação sobre o livro, para ficar só nessa forma. Imagino que você talvez anote assim, que planeje textos ou obras ou a tua semana desse jeito. Tenho anotações assim – e acho formidável que Segalen tenha colocado as primeiras notas abrindo o livro, quando decidiu publicar. Não sei se eu publicaria minhas notas desse jeito. Imagino o médico num barco se aproximando da baía de Jacarta, anotando uma coisa que ele quer fazer: escrever um livro. Roland Barthes passou anos falando sobre a preparação do romance – e as notas dele para o romance Vita Nova existem, e são um pouco assim, como as desse outro francês mais antigo. O Vouloir-Écrire, o Querer-Escrever expresso. Realizado por Segalen, e talvez por Barthes – por outra rota, que não o levou a produzir o romance.
A tradução em si é simples. Pensei bastante sobre como o “paladar e tato inúteis” seria mais interessante do que a versão em inglês que li uma vez – foi assim que conheci o livro –, que dizia que paladar e tato não. Assim fica categórico que eles não participam mesmo. Mas tanto nuls como inúteis ainda permitem a noção de inutilizados: não que não sirvam exatamente para sentir exotismo, mas se anulam. E pode ser que não sirvam.
Acabei escrevendo sobre ambiguidades e ambivalências e dialética na tradução e na mudança de continente. Não estava em nenhuma anotação isso.
Não tenho muito por que traduzir literatura angolana em português. Quem sabe eu aprenda Kimbundu e encontre coisas para mostrar. Por enquanto a sensação no corpo causada pelo fato de estar num lugar desconhecido ainda não se embotou.
E eu cumpri o prometido e não saltei mais um mês.