Notas Sobre Lima Barreto
¶
Enredo de escola de samba em 1982. Unidos da Tijuca. Lima Barreto – Mulato, Pobre, Mas Livre. Escritor. “Figura destacada do romance social”. “Sem amor, sem carinho/ Esquecido morreu na solidão”. Frases que bailam, desnudando dois extremos, cujo encontro é bem comum: alguém que luta para denunciar as artimanhas e arapucas de quem detém o poder – ou seja, o modus operandi da exploração e os preconceitos enraizados na sociedade – e a forma como a vida trata de ignorar quem guerreia para transformá-la.
Um pilar do romance social deixado na sarjeta. O racismo era um dos temas centrais de suas obras. “(…) Esquecido morreu na solidão”. Combateu, denunciou. Em fins da década de 10 do século XX, foi submetido ao não reconhecimento, à loucura.
O autor de um dos romances mais populares da literatura brasileira, Triste Fim de Policarpo Quaresma, o principal representante do pré-modernismo brasileiro, impresso em livro em 1915 (publicada inicialmente em folhetins, em 1911, na edição vespertina do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro), soube observar o seu tempo e confrontá-lo, usando como ferramentas a crítica social, a história, a ironia, o sarcasmo etc.
¶
Um episódio da sua vida revela o que Lima Barreto sofreu, e sofreu na e por causa da pele. Episódio em que uma formalidade foi dispensada de se cumprir para os demais convidados, enquanto Barreto precisou confirmar que deveria estar ali. A formalidade? Apresentar o convite para ter acesso ao navio. A situação ocorreu em uma esquadra americana que levantaria âncoras do Rio de Janeiro. “É triste não ser branco”, escreveu o autor de Clara de Anjos, em seu diário, em 1908. Conclusão desoladora e pungente. O acontecimento faz recordar algo que aconteceu a Jesse Owens, atleta que conquistou quatro medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Verão de 1936 em Berlim, na Alemanha liderada por Adolf Hitler. O discurso da supremacia ariana ruía diante das vitórias de Owens nos 100m rasos, 200m rasos, Revezamento 4 x 100m rasos e no salto em distância. Apesar do triunfo, o campeão olímpico foi ignorado pelo presidente estadunidense Franklin Delano Roosevelt, que não enviou sequer um telegrama o parabenizando. Outro episódio ocorreu em uma festa dada em sua homenagem, foi impedido de entrar pela porta da frente do hotel de luxo. Owens e sua esposa tiveram acesso ao banquete pela entrada de serviço. O filme Raça (2016), de Stephen Hopkins, traz as glórias e percalços criados pelo racismo que compuseram a vida do atleta e líder civil Jesse Owens.
O paralelo entre Barreto e Owens elucida e constata que a excelência e o triunfo não bastam quando um problema estrutural é escamoteado ou tratado como “doença” de poucos. A partir disso, os grandes exemplos de superação surgem para pôr em foco o indivíduo que sozinho conquista o mundo, vence a discriminação e o preconceito. Como coloca o sociólogo alemão Ulrich Beck, “a forma como se vive se torna uma solução biográfica para as contradições sistêmicas”.
¶
Voltando ao samba-enredo da Unidos da Tijuca: “Mesmo sendo excelente escritor/ Inocente, Barreto não sabia/ Que o talento banhado pela cor/ Não pisava o chão da Academia”. Decerto! Apesar de Lima Barreto ter postulado por duas vezes o seu ingresso entre os imortais das Letras. Ambiguidade demasiadamente humana. O militante literário, que denunciou a situação da mulher em uma sociedade que a oprimia, fez declarações antifeministas. Ambiguidade demasiadamente humana. O escritor que foi pioneiro em trazer o racismo como tema central de uma obra literária, ainda mais sendo voz daquilo que conheceu muito bem, isto é, a vítima falando por si mesma, chegou a cometer deslizes em relação a outras opressões, como as dificuldades enfrentadas pelo homossexuais. Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, lançado em 1909, a personagem Raul Gusmão, um jornalista, é ridicularizado em sua apresentação. Há um contrassenso, já que Isaías sofre com toda a sorte de perseguições, de desconfiança em relação às suas competências e é acusado de cometer crimes, já que a sua fisionomia “apresenta” as marcas de um conjunto de teorias racistas. Isaías é um intelectual repudiado por ser negro. Ambiguidade demasiadamente humana. Consultar a biografia da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz Lima Barreto – Triste visionário (2017, Companhia das Letras, 704 páginas). Aliás, a biografia de Schwarcz traz um fato que mostra o quanto o “branqueamento” está presente no mundo cultural, onde tentativas de tornar menos negro artistas de sucesso ocorrem até hoje (a pop star pele preta, que nas fotos é clareada em nome de uma melhor “composição” da luz). Barreto é identificado como branco em sua ficha de internação no Hospital Nacional. A foto abaixo da informação revela o engodo da definição. Um equívoco lastimável ou um apagamento proposital? Mais doloroso é imaginar o processo, quando refletimos que as personagens de Lima Barreto carregavam detalhes de sua negritude e ser negro era uma questão central de sua obra.
¶
O escritor que não se furtou a escrever de modo coloquial, tendo pioneirismo no trato menos convencional com a língua, antecedeu discussões atuais – além do racismo – como a urbanização desenfreada, sem planejamento de nossas cidades. Nisso, a figura do intelectual e do poeta nas obras de Barreto é fundamental. Em Clara dos Anjos, romance incompleto, no qual o escritor trabalha até falecer em 1922, publicado postumamente em 1948, trata da vida de Clara, filha do carteiro Joaquim dos Anjos, e é uma forte denúncia do preconceito racial e social que atingia a jovens mulheres negras do subúrbio carioca. Dentre as personagens que chamam a atenção, além de Clara, há Leonardo Flores, um poeta que conheceu a celebridade, mas devido alguns insucessos, o álcool e o desgosto, quedou-se na miséria e na loucura. Apesar do sucesso, Flores não ganhou dinheiro, recusou-se a ceder sua convicção ao chamamento da estabilidade financeira. A arte não deveria ser comercializada. A loucura derivava do conflito, da luta de manter seus ideias diante uma sociedade que controla e enclausura o diferente, o desviante. As reflexões de Leonardo Flores o colocam como um poeta engajado, crítico das questões políticas e sociais de seu tempo. A condição desse poeta-intelectual (posteriormente afetado pela loucura) é a de alguém que assume uma missão: sintetizar em vida todo o sofrimento e injustiças exercidas contra um povo. O dissabor do não reconhecimento atingia fortemente Lima Barreto. Cedo, ele descobriu que pela literatura poderia falar por si próprio si mesmo. E o fez. Falou de desigualdade, ironizou uma elite que nada conhecia sobre o Brasil e confrontou o processo de higienização que promovia a exclusão e marginalização dos pobres no Rio de Janeiro.
¶
O samba-enredo, apresentado no sambódromo pelo carnavalesco Renato Lage, fazia ecoar: “Sem amor, sem carinho/ Esquecido morreu na solidão”. Mas, o Lima Barreto que ressoa é o que proclama: “A insatisfação é nossa lei. Ainda se fossemos grandes!…”. Ambos, no entanto, resultado e convicção da literatura de um ficcionista, que possuía o olhar do cronista para denunciar as mazelas sociais e o racismo, e foi um visionário por antecipar os temas que gerariam discussão em nome da igualdade e o levante que ocorreria quase um século depois. O silêncio já não faz parte da agenda.