Nove poemas de Deanna Ribeiro
Deanna Ribeiro é de Olinda, já participou de antologias poéticas em meios físico e digital, publicou um livro de contos pela Editora Multifoco (2012) e divulga suas artes através do instagram @deanna_ribeiro
Link para contato: https://www.instagram.com/deanna_ribeiro/
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I.
As águas do Atlântico próximas ao Equador são mornas
também sou
não como a cerveja do fim de noite
nem como a paixão exausta
não
deslocada então a mornidão daquilo
que nem é nem deixou de ser digo
sou morna
como lábios que se roçam à procura
como o fim de tarde em Olinda
trago calores no centro do abraço bebido
com leite e canela de manhã
nem gelam nem queimam
achegam
a pele dourada de sol morna morna estendida na areia
é sempre setembro nas minhas coxas nas costas no umbigo
estado febril debaixo das ondas que cobrem o atlas e o axis
– um forno a 180 graus
– cozida ao ponto
mornidão também é isso convite e ninho
na maciez da temperatura
*
II.
Enquanto as panelas fervem e as mãos lavam o cheiro de vinagre nas unhas
vapores desenham a ideia gasosa de existência
o passo desvia buracos na calçada como carros que atropelassem o dia velozes
cruzando a margem incalculável do grito entranhado no umbigo da terra
enquanto os boletos chegam e o dinheiro não paga
a chance se esgota em progressão geométrica
a poça umedece o betume do asfalto e eu
te ofereço a descoberta recente tão pouca cheia de saliva e surpresa
uma desconfiança de que talvez viver não seja humano
isso ultrapassa toda solidez primeva
Aceita
*
III.
Ser uma mulher remediada em tempos pandêmicos
sem cólica nem lúbrica cumprindo um ciclo de vinte e oito luas
significa ser uma mulher cênica pra lá e pra cá com os pés na cerâmica
à procura do diazepan na farmácia do banheiro no armário da cozinha
sem café da manhã nem jantar fumando um maço de cigarros por dia
arrasta o lençol amarra o cabelo disfarça as olheiras
uma mulher remediada almoça as horas mergulhadas no gelo
cuja temperatura tem de ser dois graus menos fria do que ela mesma
depois do banho uma vez por semana se esquece de que é uma mulher remediada
e ensaia na sala um desmaio
quanto tempo faz não vê luz do sol há mais de um mês
como sofre a mulher que não foi medicada
ela abre a torneira segue a água e pergunta pra si como ainda não foi pelo ralo
*
IV.
De quando a gente sabe
que acordou bem viva
porque nos doem os ossos
e o vento
arrepia falando de choques
e peles e febres
insana contorcida
é assim que parece a vida
sentida também no ninho da cama
*
V.
E de repente o coração para
calam as vozes do mundo
de repente o vazio mudo e o gosto de nada
nem poeira nem sussurros
os relógios derretem nas tubulações do banheiro
assim como pinga do teto uma luz
amarela rara quase fria nada quente
só uma luz que pinga do teto ritmada
trinta gotas inaudíveis
trinta e uma
na trigésima quinta o que se vê
é uma festa parecida com o caos
o informe princípio o rosto improvável de deus
aberta a torneira nenhuma água
só as horas desembocam
e voltam a escorrer pelo ralo
tão velozes que os olhos
se veem não alcançam mas sentem
sentem o vulto que não é coisa nem gente nem massa corpórea de estrela que explode
é universo sorrindo
a certeza única jamais esperada
*
VI.
PROCURA-SE
qualquer coisa dessa que antes se perdia na pressa
abraço chumbrego querência
requisito: mãos largas e olhos céticos
*
VII.
A água faz onda às três da manhã nas curvas da nuca
derrapa nas costas e molha o assoalho
vira poça onde agora mergulham as horas
seria um mantra uma música uma reza mas
é o som do que pinga do corpo e vira sobra
que o acalanta dentro do box
avia que o sol já já raia
e só a madrugada é amiga da saudade.
*
VIII.
Eu poderia arranhar poemas nas paredes do quarto
laudas inteiras de cimento cal e tinta
como um cartão de visitas a quem chega
dizendo de mim inexatamente o que diz todo poema
uma forma inconclusa de ser entre os escombros do dia e o aceno do sol
mas as paredes ainda estão brancas um encardido ou outro de calcanhares e dedos
talvez pudesse quebrar os pratos contra o chão
da cozinha em previsão de boa sorte
o piso repleto de acontecimentos
então repetidos eternamente nos cacos
mas os pratos devidamente lavados esperam a hora do almoço
e assim a casa adormece para amanhecer ainda mais limpa
*
IX.
Dentro do copo de vidro o rabo de um peixe ainda vivo
recém-saído d’água debate
indo e vindo
como a agulha de uma singer que alinhava a barra da calça
que tu comprasse e ficou grande demais para tuas pernas curtas
vinte e quatro frames por segundo sobrepostos detrás da lente
que mira o bicho mas não acerta o foco
e então boia flutuante
no espaço-coisa-em-si cansada de realidades
do teto cai o pensamento solto na tarde além das janelas
costurando na atmosfera o estranhamento cíclico