O Buda no sótão mostra a história das imigrantes japonesas nos Estados Unidos – Por Marilia Kubota
Na coluna quizenal “Outras faces”, Marilia Kubota publica resenhas jornalísticas sobre obras de autoras e autores independentes e da grande literatura, destacando escritos de mulheres não-brancas e de autoras e autores da diversidade étnica e sexual. Desta vez, o livro resenhado é O Buda no sótão (Grua, 2014), de Julie Otsuka.
Marilia Kubota é poeta e jornalista, nascida no Paraná. Autora dos livros de poesia Diário da vertigem (Patuá, 2015), micropolis (Lumme, 2014) e Esperando as Bárbaras (Blanche, 2012) e organizadora das antologias Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco (Quintal, 2018), Blasfêmeas: Mulheres de palavra (Casa Verde, 2016) e Retratos japoneses no Brasil (Annablume, 2010). É Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.
A imagem destacada na coluna é de autoria de Carlos Dala Stella.
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O Buda no sótão mostra a história das imigrantes japonesas nos Estados Unidos
Li O Buda no sótão (Grua, 2014), de Julie Otsuka, em pouco mais de uma hora. Um romance ? Novela ? No lançamento da edição brasileira, o crítico Alcyr Pécora o classificou de “inventário de eventos”. Uma voz coletiva enumera acontecimentos na vida de várias personagens com nomes japoneses femininos desde a chegada num navio de imigrantes aos Estados Unidos, em 1910. As ilusões das “noivas do retrato” (mulheres que casavam através de fotografias), as decepções na chegada à terra hospedeira, a violência doméstica, a exploração no trabalho nas lavouras, a maternidade sufocada, os campos de concentração, a anulação da identidade são capítulos que compõem esta história da comunidade nipoamericana. E repercutem não só entre japoneses estabelecidos no hemisfério norte.
A estadunidense Julie Otsuka valeu-se da leitura de registros e documentos de imigrantes japoneses que foram para os Estados Unidos. Não há como não lembrar do filme Noiva do retrato (Picture Bride, de Kayo Hatta, adaptação do romance homônimo de Yoshiko Uchida), que mostra a vida de uma japonesa que se casa com um imigrante no Havaí. Ou, como brasileiros, estabelecer conexões com o nosso repertório cultural: os filmes Gaijin, de Tizuka Yamasaki, o globalizado Corações sujos, de Vicente Amorim e o romance Nihonjin, de Oscar Nakasato. Mas o tom narrativo de Julie aponta para o esotérico Sonhos bloqueados, de Laura Honda-Hasegawa. Em vez de reinventar sagas que reciclam mitos culturais, Julie e Laura preferem relatar tragédias em tom menor.
“Segure sua xícara com as duas, fique longe do sol, nunca fale mais do que o necessário.
A maioria de nós que estávamos no navio havia sido bem educada e tinha certeza de que seria boa esposa. Sabíamos cozinhar e costurar. Sabíamos servir o chá e arranjar as flores, e sentar e silêncio sobre os pés chatos por horas, sem dizer algo de significativo que fosse. Uma moça deve se confundir com a sala: ela deve estar presente sem parecer que existe. Sabíamos como nos comportar em funerais, e como escrever poemas curtos e melancólicos sobre a passagem do outono com exatas dezessete sílabas. Sabíamos como arrancar ervas daninhas, como escolher gravetos e como esquentar a água, e uma de nós – a filha do dono do moinho de arroz – sabia como andar três quilômetros até a cidade com um saco de quarenta quilos de arroz nas costas sem derramar uma única gosta de suor.” (página 12)
Embora o eixo temático principal de O buda no sótão seja a invisibilidade das imigrantes japonesas, o trecho sobre os campos de internamento é potente. O capítulo dedicado aos campos que aprisionaram 120 mil imigrantes japoneses e seus filhos, em áreas militares, tidos como inimigos de guerra ocupa 22 das 148 páginas do livro. Os campos instalados na Costa Oeste foram uma das políticas mais cruéis do governo Franklin Roosevelt cometidas contra cidadãos americanos e explicaria políticas de conciliação, como a minoria modelo e bairro étnicos:
“Sempre que deixávamos as J-Towns para nos aventurar por entre as ruas largas e limpas das cidades deles, tentávamos não chamar atenção. Nos vestíamos como eles se vestiam. Andávamos como eles andavam. Fazíamos questão de não andar em grupos grandes. Nós nos fazíamos pequenas para eles – e tentávamos ao máximo não ofender. Mesmo assim, implicavam conosco. Os homens davam tapas nas costas de nossos maridos e gritavam: Peldão! ao derrubar o chapéu deles. As crianças jogavam pedras em nossa direção. Os garçons sempre nos serviam por último. Os lanterninhas sempre nos levaram para cima, nas sacadas do segundo andar dos teatros, e sempre indicavam os piores lugares da casa. O paraíso dos negros, eles diziam. Os barbeiros se recusavam a cortar nossos cabelos. Duros demais para nossas tesouras. As mulheres pediam para sairmos da frente dos carros sempre que estávamos muito próximos. “Desculpe”, dizíamos, dando um passo para o lado com um sorriso no rosto. Porque a única maneira de resistir, como ensinaram nossos maridos, era não resistindo. Na maior parte do tempo, no entanto, permanecíamos em casa, nas J-Towns, onde nos sentíamos em segurança no meio de nosso povo. Aprendíamos a viver certa distância deles, e os evitávamos sempre que possível.”(páginas 58 e 59).
Japan-Towns ou J-Towns são denominações de comunidades étnicas, como Little Tokyo, em Los Angeles, ou Japantown, em São Francisco, o equivalente ao bairro da Liberdade em São Paulo.
Julie Otsuka venceu o Prêmio Pen/Faulkner de 2012 com o livro. A autora não viveu a experiência do aprisionamento nos campos de internamento, mas seus pais, sim, tema que aproveitou em seu primeiro romance, Quando o imperador era divino. Julie nasceu em 1962, em Palo Alto, Califórnia. Graduou-se em Artes pela Universidade de Yale, em 1984 e como Mestre em Artes, pela Universidade de Columbia, em 1999.