O dia em que a Morte se foi – Por Michel Yakini
A Coluna Michel Yakini apresenta crônicas, contos e poemas deste autor paulistano, atuante no movimento literário das periferias de SP.
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O dia em que a Morte se foi
Entre tantos desesperos, sensação de incapacidade e esse misto de raiva e tristeza modulando os dias, embolorando o ar, chego a suspeitar que a Morte nos deixou. Isso que tá acontecendo pode ser qualquer outra coisa, até parecida, mas Morte é que num deve ser.
Morte é um ser ágil e cruel, mas normalmente nos permite um velório, um choro fúnebre, uma despedida digna, um punhado de terra sobre o caixão. Ninguém morre assim sem causa, sem desconfiar de quem arquiteta nossos sumiços, sem intuir a certeza calada que enxerga as sombras da madrugada e o capuz da covardia. Morte não é invisível, como esse troço de agora, pois sempre nos ofereceu o espanto, seja em que circunstância for.
Morte era quando a gente toda se reunia em meio a abraços, preces, café e reencontros, pra celebrar a existência e partida das pessoas queridas, como foi com Vô Montanha, Vó Rita, Vô Paulino, Tio Tato, Martinho da Bahia e Daniel do Koteban, mas dessa vez não.
Dona Inha se foi e nem sei qual foi seu último olhar sobre a vida. Tia Valda se recolheu sem nem mesmo receber nosso último pedido de benção e Tio Raimundo foi junto, logo depois, sem direito a visitas no leito e nem cerimônia final. Isso de agora só pode ser outra coisa. Morte é que não é.
Morte é tão parte da gente que chega a ser ingênua comparada a tudo que tá acontecendo. Morte dependendo da situação permite até ser engambelada, assim como quando Iku (a Morte) é enganada por Euá pra livrar Orunmilá de sua perseguição, porque como ensina os itans, Iku foi criada por Obatalá com a seguinte condição: Só Oludumaré, o ser supremo, poderia decidir a hora de morrer de cada pessoa.
No tribunal de Ausar, no Kemet, Maat – Deusa da Verdade e Justiça-, pesa o coração das pessoas na travessia pro mistério. Pra adquirir a vida eterna, o coração deverá ser tão leve quanto a pluma de Maat. Do contrário, será entregue à Ammut, a devoradora, pondo fim à existência daquela alma. Mas ainda assim, neste caso, a Morte é só uma possibilidade.
No ciclo de vida-morte-vida a autora Clarissa Pinkola Estés explica diversas no livro Mulheres que correm com os Lobos, que esse processo é parte de um percurso de pequenas mortes (físicas, emocionais, ciclos, fases, etc.) que nos leva a uma nova possibilidade de vida, ou seja, toda Morte antecipa um renascimento, mas essa desilusão, desencantamento e medo permanente que reinam agora entre nós, só pode ser outra coisa, Morte é que num é.
Morte, assim como qualquer manifestação, deixa de existir quando não acreditamos e não tememos mais sua existência. É como a história de algumas entidades sagradas que perdem força em determinados contextos e deixam de ter presença porque ninguém mais faz voto de crença nelas.
Admito que, apesar do medo, eu mesmo pratico uma boa parte da descrença sobre a Morte, muitas inconscientes. Seja quando furo, mesmo por minutos, a quarentena; quando fico hipocritamente indignado com quem faz festa, sai de casa ou não usa máscara; ao depositar certeza que a solução ou culpa disso tudo se deve a um só genocida ou a um só salvador, único e eficaz; quando desconsidero que essa situação também depende das minhas escolhas, intenções e colheitas ou ao insistir nos textos, lives, debates e estudos, que não fazem tanta diferença no contexto.
A Morte só me pediu pra parar um pouco, há mais de um ano, sem contar os pedidos anteriores, que ignorei, mas eu preferi desacreditar da grandeza, das contradições e mistérios da Morte. Por isso desconfio que, pela banalização e desprezo que lhe ofereci até aqui, a Morte simplesmente nos deixou à própria sorte, sem avisar pra onde foi, ou mesmo quando voltará.
(Ilustração de capa: Amanda Porto).