O gosto do trago – Um conto de Felippy Damian
Felippy Damian, cineasta bissexto, acredita que o cinema é uma cachaça, que uma caneta pode ser uma espada, que Maradona é melhor que Pelé e que há uma beleza triste em ter nascido no lugar mais distante do mar neste continente latino.
***
O gosto do trago (ou Homem que não se lembra bebe café para dormir)
Quarto escuro. O homem é um bom animal. É ponderado. O bom animal é aquele que procura e encontra seu feixe de luz. A tela de um computador ilumina seu rosto e lhe diz que este, este é um bom e grande animal.
Oi. Oi. Você toma café de noite? O café me dá sono. E você sempre toma café antes de dormir também? Não sei. A verdade é que não me lembro. Fogo. Queima a ponta do cigarro. Trago. Eu comecei tem pouco tempo. Pouquíssimo tempo. No começo era pra ficar acordado. Preferia não dormir do que dormir mal. Quando vi, eu só dormia se bebesse café. Mas você nem sempre dormiu mal. Não. Eu dormia que nem criança. Que nem criança? Sim, que nem criança. Mas não tem tanto tempo assim que você deixou de ser criança. Acho que talvez e tenha deixado de ser quando parei de dormir assim. Eu quase me lembro. Copo de café. Deixa pra lá. Sabe como ou porque foi aumentando o café e diminuindo o sono? Como eu não te conheço, eu diria que foi por causa do trabalho, eu estava trabalhando que nem um desgraçado. Eu precisava dar conta. Mas sei lá. Foi depois que eu saí de casa.
Eu tenho um moleque com a Maria, o Macário. O guri não dorme, acredita? Mas eu dormia. Mal, mas dormia. Eu e a Maria estávamos nos matando, e o guri no meio. Um dia eu acordei. A Maria havia deixado um bilhete dizendo que iam ficar uns dias com a mãe dela. Eu não senti falta deles. Pelo menos achei que não. Mas sentiu. Senti. Quando voltaram a casa tava vazia. Eu sei, eu deixei tudo. Saí com a roupa do corpo. Um gole de café. Eu não precisava mais do que isso. Você ainda não fuma? Eu poderia jurar que comecei a fumar nesse dia. Eu fiz bastante coisa pela primeira vez nesse dia. Acho que vivi uns 30 anos naqueles dias. Mas eu ainda não fumo. Mas você já sabe. Do quê? Do gosto do trago. Você acha que a gente é capaz de saber realmente de algo sem ter a consciência de que sabe? E essa conversa insólita teria qual outro motivo? Não sei. Tragos se repetem. Mas apesar de tudo isso, acha que já é o bastante, que já viveu o suficiente, ou ainda é pouco? Sempre vai ser pouco. Fumaça.
O escuro do café colore a noite do animal sonolento. O sono bate como bate a ponderação. Antes de tombar, aquele animal pensa, o homem vale aquilo que pondera, aquilo que pesa, aquilo mede, aquilo que recusa. Aquilo que pondera.
A fumaça se esvai, porém a luz do computador não se apaga.