“O método da exaustão” de Manoel Ricardo de Lima: uma resenha de Arthur Lungov
Arthur Lungov é autor de Corpos (Quelônio, 2019), obra que foi contemplada pelo 2° Edital de Publicação de Livros da Cidade de São Paulo; e da plaquete Anticanções (Sebastião Grifo, 2019). Foi publicado em coletâneas e revistas literárias. Email para contato: albugelli@gmail.com
Manoel Ricardo de Lima publicou O método da exaustão (Garupa Edições, 2020), Pasolini: retratações (7Letras, 2019), Avião de alumínio (Quelônio, 2018), Geografia Aérea (7Letras, 2014), Jogo de Varetas (7Letras, 2012) e As mãos (7Letras, 2012), entre outros.
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Nada de narrativas
Em seu novo livro, Manoel declara os princípios de sua poética na forma violenta de uma recusa: “nada de narrativas / nunca mais”. Essa postura de negar-se a contar, a estruturar uma mensagem de forma a comunicar algo, o que quer que seja, chama a atenção por seu distanciamento radical do que tem sido mais produzido e lido em termos de poesia brasileira contemporânea. Em um cenário em que a poesia é em grande medida tratada como lente de leitura da realidade mais reconhecível e da pessoalidade mais imediata, o estranhamento que o poeta causa ao negar-se como sujeito enunciador chama a atenção. E é nesses termos que O método da exaustão se apresenta como uma resposta/não resposta particularmente fértil aos impasses com os quais nos deparamos enquanto produtores e leitores de poesia.
As 11 partes que dividem o livro parecem nunca gravitar em torno de um conceito comum, de um tema que surja de forma expressa ou organizativa. A organização aqui parece antes vir de uma utilização do repertório formativo dos poemas: as obras de poetas, cineastas, artistas e cientistas, vivos e mortos, assim como os livros passados do próprio Manoel, recriados em citações, paráfrases e reescritas. Referências essas que se articulam em um convite a possíveis releituras desses materiais, ao mesmo tempo em que como reescritura obsessiva, exercício de repetição onde os duplos nunca formam um par perfeito. De modo que a unidade poética parece vir antes de um jeito de fazer, ler e estruturar poesia do que de qualquer fundo temático, desejo comunicativo ou subjetividade individual.
O título do livro pega emprestado o nome de um método de cálculo da geometria euclidiana que nos permite descobrir a área de uma figura desenhando-se em seu interior uma série de polígonos, cuja soma das áreas converge para a área da figura original. Ao adotar como elemento nomeador do volume um conhecimento que é meio de alcançar uma verdade, mas não a verdade em si, o poeta dá indicação de sua recusa também em nomear sua poesia como produto acabado. Ela é antes um método móvel, que jamais alcança seu fim por reconhecer sua importância no moto-contínuo de sua pesquisa, não em seus possíveis resultados. Ela é um exercício.
E Manoel transporta esse conceito de exaustão à sua poética, ao compor seus poemas como polígonos dentro de polígonos. As apropriações e reapropriações, dos outros e de si mesmo são aqui utilizadas como um caleidoscópio de textos e hipertextos que, conforme se desdobram linguagem adentro, vão se aproximando cada vez mais da imagem geral do livro. Mas, ao contrário das formas geométricas, a imagem jamais se completa, jamais fecha suas pontas, jamais descortina sua área: a existência de textos dentro de textos dentro de textos forma um fio que jamais encerra suas potências, e permite traçar caminhos para sempre que se desdobram, se dividem e se reencontram, em uma mobilidade infinita.
O autor intencionalmente se distancia do próprio passado, e o faz invocando um conceito matemático como modo de tentar entender o que resta à palavra poética de sua capacidade de ferramenta, e não de verdade. Potencial que se contrapõe ao caráter elucidativo que foi atribuído ao ato poético, nessa tendência de tentar explicar pela poesia, uma postura que Manoel afasta em versos como “ninguém enxerga quase nada / quando se começa a falar, porque / se fala pelos cotovelos, como se / dissessem ou se conseguissem dizer / qualquer coisa ao redor”.
O poeta desentranha de textos lidos aquilo que apenas uma ferramenta lhe permitiria: a dissecação das referências, no sentido mesmo de retalho, de destruição sistemática de um organismo fechado, abrindo-o para compreendê-lo, e criando a oportunidade de remonta-lo. Versos como “destruir a embarcação / isto é uma ordem, um jogo / mas pode ser lido como um / manual” nos remetem a essa ideia de escrever poesia como modo de construir a partir de fragmentos que precisam ser relacionados, rerelacionados, divididos novamente, em um processo de reescrita, releitura, re.
Essa fragmentação é, de certo modo, o desentranhamento da poesia de um Eu, de um ego, de um princípio organizativo e unificador que permita uma leitura explicativa e redutora, que forme um uno inseparável e orgânico. Manoel aponta a não organicidade, mesmo a artificialidade da construção poética, essa teia de textos, imagens, sons e referências, da qual é preciso extrair sentido quase à força, contra.
Escrever sobre O método da exaustão parece de certa forma colaborar com seu projeto, por ser necessariamente reescrita daquilo que o poeta nos apresenta (e ele nos apresenta: nunca nos conta). Lê-lo também. Negá-lo. Atacá-lo. Copiá-lo. Manoel nos dá um livro que absorve, acolhe, fatia e reorganiza tudo aquilo deriva dele, por jamais ser fim, mas eterno meio, modo, método. E o faz também enquanto desafio. Manoel desafia seus leitores e interlocutores a continuarem no processo de (r)destruição e (r)construção que – faz questão de ressaltar – não inaugura, mas repropõe.
Põe a jogo o que a poesia, no fundo, precisa ser: uma linguagem móvel, insurrecta, inclassificável, ambígua. Mas metódica.
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(Fotografia de Mila Langel van Erven [originalmente colorida])