O real nos doerá para sempre – Por Vinícius da Silva
No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.
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O real nos doerá para sempre
A morte nunca esteve tão perto dos nossos sonhos. E não sei se por razão de um silêncio ensurdecedor ou de uma negação obstinada, ela sempre esteve por perto, mas somente agora podemos vê-la. Eu não me lembro da última vez (ou talvez da primeira) que senti que poderíamos morrer a qualquer momento. Na verdade, acho que a sensação do presente é a sensação de que nossa morte apenas será declarada, uma vez que já estamos mortas, caminhando sob os escombros dos ossos comuns. Correndo em direção contrária à carnificina que, por sinal, está em todo lugar.
Ainda assim, sinto-me obrigada a escrever sobre uma interminável vontade de viver que não nega a morte, mas a abraça como se junto a ela uma só coisa fosse. Quando tomo consciência, as palavras perdem seu lugar comum e, assim como o vento, pairam sob os corpos lá fora. Recebo cada notícia, cada prenúncio, como se fosse também sobre mim. Vejo a cena pela janela de minha casa.
Há um cômodo da minha casa do sonho que é tomado pela terra. É como se, por saudade ou algo do tipo, a terra estivesse tentando me buscar. É muito difícil, no entanto, saber o lugar do sonho e localizar minha própria casa. Parece que estamos buscando apenas um lugar seguro para dar as mãos e correr juntas. “Eu estava dormindo e sonhei que morava em outro lugar”, foi o que disse assim que acordei, esperando o próximo sono para retornar ao lugar que me seria lar.
Durante os picos de ansiedade, durmo para evitar qualquer contato com a realidade e com as pessoas. Durante o sono, busco habitar um espaço não-localizável, um lugar grande o suficiente para acolher a pessoa em quem me transformo nessa transmutação. Nesses sonhos, que me soam como roteiros pensados a partir de memórias fragmentadas de um tempo que não volta mais, estou construindo um lugar novo, um mundo sem palavras.
O sono profundo é um estado sem palavras. A morte é um estado de consciência. Não pensamos em nós mesmos quando morremos. O real não nos dói quando morremos. As palavras não existem para a morte. Como aquela fotografia de quando eu era pequeno que está na sala da casa de minha avó, as palavras passam à decoração. Palavras tornam-se imagens. Não posso sequer pôr em palavras o que as minhas pinturas significam. Seria uma violência de tal grandeza que a pintura deixaria de sê-la.
Apesar das palavras, buscamos inventar sobrevivências. A casa em que moro é uma casinha bem pequenininha, onde as palavras decoram o jardim de flores. Jardim silencioso de palavras, mas barulhento de vida. Não mais a vida que dói. A vida que encontramos na morte. Morrer é viver, então. A diferença é simples. Porém, não posso contar. Se eu lhe contasse o segredo da morte vivida, ela deixaria de ser. Recuso-me a abrir aquele meu diário antigo onde escrevera sobre isto: a ausência das coisas. Que não é a morte, embora eu pensara nela desta forma. Se eu pudesse me desculpar com a morte, porém, não sei se o faria também. Não seria necessário, pois não haveria palavras para tal ato. Se houvesse, deixariam de existir no momento de sua enunciação. A linguagem opera de forma inversa quando morremos. Não há mais o que criar, apenas o que esquecer.
As palavras são violentas. Elas trazem à vida seres que não pediram por isso. As palavras anunciam que a morte está próxima e que eles estão vindo nos buscar. Há instantes atrás, perdemos tudo; estamos perdendo tudo dia após dia. Como pode ser nossa a morte dos sonhos deles? Como pode ser o sonho de alguém ser quem nos mata?
Há alguns dias, quando encontrei-me com Jota nos portões do fim do mundo, percebi que não temos saída a não ser passar pelo vale da morte para conciliar novamente a ruptura do mundo. Nem somente ruptura, nem somente mundo. A ruptura do mundo é um não-lugar a ser ocupado. É a quebra necessária para a nossa existência. Juntas, desejamos profundamente pôr fim a este mundo. Esse é o único desejo do qual não abrimos mão. E apesar da lenta anunciação diária que inaugura um cotidiano triste, continuamos gritando ao real: não vão nos matar agora.
Enquanto escrevo este texto, lembro-me de Orides Fontela: “Construir torres abstratas/ porém a luta é real. Sobre a luta/ nossa visão se constrói. O real/ nos doerá para sempre.” Queria poder dizer à Orides que as torres desabaram sobre nossas lutas, estamos isoladas sob os escombros buscando por algum sinal de vida. Qualquer dor parece pouca diante a dor do real, no entanto, ele continua pulsando, lembrando-nos de que ainda temos chão para caminhar e onde construir novas torres. Afinal, para sempre um dia sempre acaba.