Oito poemas de Luiz Carlos Quirino
Luiz Carlos Quirino reside em Porto Alegre. Formado em Ciências Sociais, é autor de poemas, contos ilustrações e pinturas que publicava em um blog já não existente. Publicou em 2017 uma plaquette com 25 poemas sob o título Seremos destruídos pelo princípio da não contradição, um conto numa coletânea editada pelo SENALBA/RS e alguns poemas em revistas eletrônicas do Brasil e de Portugal.
***
Ossatura
após o extermínio
foi preciso enterrar os mortos
sob a terra profanada mesma
mesmo com os assassinos
andando sobre ela ainda –
indiferentes ao choro
sorriso no canto dos lábios –
ajudaram a cavar as covas
e foram considerados
homens decentes
afinal de contas
todos morremos
mais dia menos dia
as viúvas obtiveram
segundas núpcias
com os estrangeiros
porque afinal de contas
é preciso tocar a vida
criar os filhos
constituir patrimônio
o demônio – no entanto
sempre cobra suas dívidas
e a terra tornou-se estéril
as criações definharam
e o sol calcinou até as pedras
à noite o vento morno
sussurrava uma verdade
enlouquecedora
tornando-as insones
pela manhã todos estavam
exaustos
sob o sol
sobre a terra que
se transmutava em sal
cercados por galhos de carvão
árvores de ossos
a ossatura do corpo
até ela em erosão.
*
Do pai
não restou quase nada
somente um modesto casaco
de punhos puídos
botões díspares e
fios puxados em
alguns pontos
como uma lembrança
precisa de zelo
dado que pode
se desfiar
e desaparecer –
voltar a ser novelo
restou também um trejeito
de sorrir um sorriso enviesado
de acanhamento e melancolia
nos cabelos – um prematuro grisalho
signo da brevidade
do tempo relativo
inscrito
no corpo
restou essa imensidão
a ser explorada
sem instrumentos de navegação
onde a memória destroçada
é uma tábua
(que boia) em que tento
manter-me na superfície
de vorazes vagas
que engolem o passado
cuspindo ao futuro
a ausência.
*
Língua morta
Um filamento de ar
morno atravessa o tempo
nos varais da casa
das lembranças
(nem chega a mover
as fronhas estendidas)
sopra a monotonia
necessária ao poema
e à fermentação dos dias
a alegria dobrada numa gaveta
aguarda as tardes solares
por agora – apenas lama
silvos continuados da
memória comprimida
entre os sulcos da terra
arada pelo caminhar
obsolescente dos dentes gastos
do olhar que se distancia
da vida em suspensão e
enterra-se
no filete de sangue da língua morta
usada mais para calar do que dizer
língua não filológica
língua-apagamento
*
Noiva chinesa com rosto de sol
Tentamos apagar nosso rastro
os pés fendidos – no entanto
tingiam a salina
de vermelho
o sal salgava o sangue
que seguia uma linha tortuosa –
dos pés ao sal
do sal à língua
turvando o canto
talvez fosse neve o sal
ou açúcar
e os pés fossem formigas
e nós – formigueiro
ou colmeia
ou estrela cadente
a disputar os olhos
dos andantes
que recolhiam o sal
as costas em arco
imprimindo um rastro
os pés lendo o caminho
respirando o sal
encardindo o vestido
da noiva chinesa
de rosto de sol
empunhando um arco tensionado
apontado para os pés
assassinava
o rastro dos passantes
e escrevia o nome
de seu amante
com tinta
vermelha –
na superfície branca do sal
tinta sanguínea
*
Tutano
hoje
tudo parece claro:
a casa que me legaste,
de alicerces
pouco profundos
e paredes frágeis,
não podia ser reparada.
do cálcio dos meus ossos
-em vão-
então
preparei a argamassa
que não se deixava fixar
aos tijolos:
escorria pela sarjeta
em direção ao oceano,
moldando peixes de pedra.
da tua face
igualmente
quase nada restou.
as poucas fotografias que eu trazia
lentamente foram se
apagando
roídas pelas traças
e pelo tempo.
do tutano
-então-
em vão
extraí a goma
com a qual ambicionei repará-las,
ignorando o fato
de se esfarelarem
ao toque.
tive de me contentar
então,
desde sempre,
com tentar conter
teu pó
entre meus dedos
-em vão.
*
uma flecha
que pudesse ferir
a pobreza
da condição humana
ou um poema
sua curva – no entanto
iria da hipérbole
ao comedimento
sem em momento algum
segurar entre dedos
o objeto
nem por isso
menos letal
canto da sereia-farol
amor fati que
nos despedaça
ainda assim amor
como posso aprendê-lo
se meus irmãos desejam
meu aniquilamento?
ainda assim é preciso
narrar as antifaçanhas
dos homens tacanhos
que desejam tanto e
se contentam
com tão pouco
e deterioram tudo
o que tocam
arrebatados por sua
própria imagem no espelho
do qual trago comigo
alguns cacos
dolorosos como a verdade
por que os amo?
porque os amo
como o lagarto ama o girassol
e o girassol ama o pintor
gasto minhas tintas ressecadas
com os cegos
entrego minhas orelhas
em sacrifício.
*
Animal noturno
o uivo
das crianças famintas
não atrapalha o sono daqueles
que dormem saciados
e com a consciência tranquila.
incautos!
a noite é um animal que espreita
a presa ferida,
sente o cheiro do sangue,
carrega vazia a barriga
enquanto
uma sinfonia concreta
– de uivos, passos, sirenes…
e pausas –
dança com o tempo sobre os ombros,
num rompante de alegria,
harmonia frágil,
falsa:
os animais noturnos
são predadores
de caninos e garras
afiados.
o caçador perfeito
espreita
enquanto a presa
perfeita
dorme.
*
Alucinação
Antes
Houve um céu azul.
Hoje,
Sobre nossas cabeças,
Só uma massa
Sonolenta e cinza.
Que se torna negra
À medida que encontra as águas
Adormecidas.
Por onde navagueiam
Sonâmbulas vitórias-régias
De sacolas de supermercado
E jacarés
De dentes enferrujados.
Por cima delas salta um índio
Nu.
Tensionando seu arco,
Persegue um animal impossível.
Alucinado,
Em meio à selva
De malocas de compensado e zinco.