Oito poemas de Natan Barreto
Natan Barreto nasceu em Salvador em 1966. É formado em Interpretação Teatral pela Uni-Rio; tradutor e intérprete, pelo Institute of Linguists; e pedagogo, pela London South Bank University. Vive em Londres desde 1992, onde trabalha como professor primário.
É autor dos livros de poesia Sob os telhados da noite (1999); Esconderijos em papéis (2007); Movimento imóvel (2016), que recebeu uma Menção Honrosa da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro; Bichos: poesias desenhadas (2017); Um quintal e outros cantos (2018), que venceu o Prêmio Sosígenes Costa de Poesia, concedido pela Academia de Letras de Ilhéus; e O ritmo da roda (2019). Publicou também Quase-sonhos & Traduzido da noite (2009), edição bilíngue – francês/português – de poemas de Jean-Joseph Rabearivelo, escritor de Madagascar, e a biografia Entre mangueiras, a vida de Eunice Palma (2011).
Site: Natan Barreto.
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Opostos iguais
Dizem que os opostos se atraem.
Meu oposto me é igual.
Meu igual é o meu oposto.
Vejo em seu corpo
um reflexo do meu corpo.
Fico cara a cara com o meu igual,
corpo a corpo,
rosto a rosto –
com o meu igual, que é o meu oposto.
Há opostos que se atraem,
e há iguais –
de igual forma, há iguais.
Eu atraio o meu igual
que igualmente me atrai.
Atrair ou ser atraído
não é voluntário gesto,
não é gesto escolhido.
(Poema do livro Sob os telhados da noite, Edição do autor, 1999)
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Navio de várias árvores
Já sei que jamais serei um perfeito poliglota.
Tampouco poderei tentar a viagem de volta.
O princípio da pátria passou.
Estou no meio do mundo.
Sou cidadão de cidades.
Melei-me na lama de muitos idiomas.
Minha língua-mãe me lambe,
mas já não me lava
da lava de palavras que me levam…
E minha Babel não desaba.
Grande mundo mangue!
Sigo atravessando sons ancestrais,
que seguem
sem saliva, sem sangue,
soltos,
em solitários sopros,
de boca em boca.
Assim beijo fluxos –
chamas de riscos acesos
dentro da noite dos homens.
E o incêndio não cessa,
por mais sujo o som;
rios de raízes em flamas
fincam no crânio suas âncoras
e ficam
rasgando os lençóis subterrâneos
suspensos no caos do cérebro.
Sou tronco cheio de enxertos –
navio de várias árvores.
(Poema do livro Esconderijos em papéis, Editora Kalango, 2007)
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Minha mãe morreu em Londres
Minha mãe morreu em Londres,
embora tenha morrido em Salvador.
Ela em mim morreu em Londres. E eu,
sozinho, escondido num quarto distante,
ao olhar-me no espelho, vi a tristeza
alastrando suas raízes no meu rosto mais
velho. A saudade se esticava no vazio
como raio fixo no que atravessa,
cavando o nada, final de tudo.
Quem enterra cava em si sua caverna,
oco no qual se esconde ao passar pelas ruas,
irreconhecível aos olhares estranhos
de estrangeiros na própria terra. Era
dezembro. Em mim tudo caía, enquanto
eu caminhava às pressas, já viajando
de volta, a anoitecer solitário
num dia que amanhecia sem sol.
(Poema do livro Esconderijos em papéis, Editora Kalango, 2007)
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Trono de armas
a partir da escultura de mesmo título, criada por Cristóvão Canhavato em 2002
As armas aqui desarmadas estão cansadas,
como o céu de Moçambique.
Como um rei em ruínas,
sentam-se transformadas no próprio trono.
São fuzis de além-mar, em fusão: AK-47, G3, AKM, PPS.
As armas aqui armadas estão caladas,
como o céu de Moçambique.
Mas no silêncio intenso dos seus ossos metálicos
ouve-se ainda a marcação do tempo
por dentro do medo da carne.
Em fusão, são fuzis de além-mar: AK-47, G3, AKM, PPS.
As armas aqui à mostra estão mortas,
como os muitos homens que mataram,
sob o céu de Moçambique.
(Poema do livro Movimento imóvel, Editora Kalango, 2016)
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Canguru
Depois que a dor desfia
a bolsa e num rio desce,
noutra bolsa se enfia
a cria, enquanto cresce.
(Poema do livro Bichos: poesias desenhadas, Editora Kalango, 2017)
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Desaprendendo
Tem gente que diz ser melhor
não soltar passarinho,
que preso na gaiola
ele desaprende.
Meu pai, quando resolveu soltar,
soltou tudo:
pardal, sabiá, canário, curió –
o canto se foi com o colorido
tentar reaprender quem era.
E tanto alçapão armado,
pedrada de badogue,
unha de bicho!
Mas a mata era mais vasta!
Sob o zinco da varanda,
o cinza –
as gaiolas balançando ocas:
meu pai desaprendendo.
(Poema do livro Um quintal e outros cantos, Editora Editus, 2018)
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A palavra escura
a Maria Amélia de Almeida Teles, torturada pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, no DOI-CODI (Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna). São Paulo, dezembro de 1972.
“Mãe, por que você tá azul?”
Amadurece em duas crianças
a palavra escura:
tortura.
O mijo no chão de cimento,
na vulva suja, na mão.
O sangue lambendo a pele,
as fezes fedendo o instante
e o vômito na voz,
no nome do filho,
que não vê naquilo
a mãe.
E a pergunta da filha:
“Por que você tá azul, mãe?”
O azul, do céu, do mar, do lápis de cor,
da tinta no papel, dos olhos de alguém,
errava ali, na carne inchada da mãe.
Tortura:
amadurece em duas crianças
a palavra escura.
(Poema do livro O ritmo da roda, Editora Kalango, 2019)
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Queimar livros, para depois queimar homens
a partir de uma imagem da queima de livros na Alemanha Nazista, em maio de 1933
“Onde se queimam livros, acabam por queimar pessoas.”
Heinrich Heine
Queimar livros, para depois queimar homens,
e na fumaça que some, depois do fogo, apagar:
letras, histórias, páginas, canto, memória,
carne e o silêncio das horas, eras por se entrelaçar.
Queimar mesmo, sem metáfora ou disfarce,
na praça a fogueira faz-se à pressa de quem lá está.
Queimar livros, para depois queimar homens,
em multidão, nus, sem nome – queimar da ideia o que é ar.
(Poema do livro O ritmo da roda, Editora Kalango, 2019)