Onde estão os romances brasileiros escritos por mulheres negras? Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada à professora doutora do Colégio Pedro II e poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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Nos anos oitenta, no livro Erguer a voz, bell hooks faz a seguinte observação:
O número daquelas de nós que escrevem e são publicadas continua reduzido. As razões do silêncio são variadas e multidimensionais. As mais óbvias são as expressões do racismo, do machismo e da exploração de classe para reprimir e silenciar. As menos óbvias são as lutas internas, os esforços feitos para ganhar a confiança necessária para escrever, reescrever, desenvolver por completo a arte e a habilidade – e o ponto em que tais esforços falham. (2019, p. 37)
Trata-se de um outro tempo e um outro país, mas a falta de autoras negras publicadas e os motivos pelos quais existe essa falta se repetem no Brasil de hoje. Onde estão as mulheres negras romancistas?
Em tempos de festas e prêmios literários, lançamentos de traduções, ebulição da autoria negra no mercado editorial, percorremos listas de obras e o vazio permanece em torno de romances escritos por mulheres negras. Me atenho aqui ao romance por algumas razões.
A primeira é o fato de perceber que a produção de poesia é dinâmica e chega com mais facilidade ao público por outras vias que não o livro. Redes sociais, poesia falada, auto publicação em meios digitais fazem circular poesia escrita por mulheres negras. Além disso, as antologias acabam por ser nossa porta de entrada para a publicação de poesia, conto e crônica.
Outra razão é que vejo o romance como um gênero que dá maior projeção ao autor ou autora. Ele é um fundador de mentalidades, produtor de sentidos para a cultura, vetor de ruptura com tradições.
A pesquisa premiada de Fernanda Miranda, publicada pela editora Malê, Silêncios prEscritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras, elenca oito escritoras. Já o livro coordenado por Eduardo de Assis Duarte, Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI, relaciona, dentre os cem, vinte e sete escritoras. Dessas, seis são romancistas. Certamente há casos omissos de mulheres negras romancistas que não entraram nessas duas pesquisas ou em outras obras de referência por várias razões, inclusive porque não haviam publicado à época do trabalho, como Eliana Alves Cruz, cuja obra já conta com três romances. O que quero ilustrar é que, além do desequilíbrio entre escritores negros e escritoras negras, há ainda esse vazio em relação ao romance escrito por mulheres negras.
Para se escrever um romance é necessário investimento de tempo. Como fazer isso quando se carrega o mundo nas costas? Chegar ao fim de um projeto de uma narrativa longa envolve grande desgaste físico e emocional. Que mulheres podem se dar dessa forma à literatura, não pontualmente, uma vez na vida, mas como projeto profissional duradouro?
Apesar dessas dificuldades estruturais, há ainda mulheres negras que deram conta da tarefa de escrever romance no Brasil, estão aí Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Miriam Alves, Ana Maria Gonçalves e Marilene Felinto – para citar algumas delas – que não me deixam mentir.
Porém, existem também barreiras psicológicas e sociais que envolvem o racismo e o machismo tanto internalizado como institucionalizado pelo mercado editorial. Como aponta bell hooks, confiança para escrever e percorrer o caminho, inclusive da falha, é algo raramente trabalhado na psique de mulheres negras seja no âmbito íntimo e familiar, seja nas escolas e em outros espaços como livrarias e bibliotecas, onde esse vazio está exposto nas vitrines e prateleiras.
A grande movimentação em torno da autoria negra em tempos de apelo antirracista criou alguns fenômenos de público e crítica. Nessa lista vemos mulheres negras no campo da discussão teórica, na poesia, na literatura infantil e juvenil, enquanto o território do romance continua masculino. A despeito da qualidade das obras, é necessário refletir sobre o quanto dessa lacuna pode ser a manutenção do estereótipo de que a dita escrita feminina é mais afeita à poesia ou de que o conto se molda melhor à linguagem da mulher negra por sua condição ancestral de contadora de histórias.
Esses estereótipos parecem não servir tanto quando casas editoriais de maior ou menor porte publicam traduções de escritoras negras estrangeiras. Para citar algumas dessas traduções, As alegrias da maternidade, de Buchi Emecheta, Menina, mulher, outra, de Bernardine Evaristo e A autobiografia de minha mãe, de Jamaica Kincaid, são exemplos de obras imperdíveis e com características diferentes, dicções próprias e de grande relevância para a literatura.
Seriam as mulheres negras brasileiras menos propensas ao romance? Certamente não. Essa é uma discussão que não pode ser calada pelos assédios da representatividade comercial, que mercantiliza identidades de gênero e raça enquanto controla a manutenção do machismo e do racismo institucional e estrutural.