Onze poemas de Edir Pina de Barros
Edir Pina de Barros, professora aposentada da Universidade Federal de Mato Grosso, é bacharel em Ciências Sociais e Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Doutora e pós-doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, atua como perita de juízes em conflitos fundiários que envolvem terras indígenas e quilombolas. Organizou livros, publicou capítulos em vários livros e artigos em revistas nacionais e estrangeiras. Seu livro, Os Filhos do Sol: História e Cosmologia na Organização Social de um Povo Karib foi indicado ao Prêmio Jabuti 2004 (melhor livro de Ciências Sociais e melhor capa) pela Editora da Universidade de São Paulo, que o publicou no ano anterior. Em 2001 foi homenageada pela Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso a título de “Reconhecimento pela dedicação à luta em defesa dos povos indígenas brasileiros”. Algumas de suas poesias estão publicadas em mais de uma dúzia de antologias. Em 2009 obteve primeiro lugar (Chave de Ouro) no concurso nacional promovido pela Academia de Jacareyense de Letras (São Paulo) com o soneto Grafismo Indígena. É membro de Poetas del Mundo, sócia benemérita da Academia Taguatinguense de Letras (Brasília) e membro titular da Academia Virtual de Poetas de Língua Portuguesa (Cadeira número 11 – Auta de Souza).
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Mutações
(Pantum)
Um mar de soja é tudo o que se vê
agora ali, nos campos do cerrado,
não resta mais sequer um pé de ipê
nem olhos d’água, tudo foi arado;
agora ali, nos campos do cerrado,
não correm mais riachos transparentes,
nem olhos d’água, tudo foi arado
de soja e sorgo, viçam as sementes;
não correm mais riachos transparentes,
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
de sorgo e soja, viçam as sementes;
por conta da ganância, desatinos;
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
porque foram as matas derrubadas,
por conta da ganância, desatinos,
secaram os riachos, as aguadas;
porque foram as matas derrubadas,
não mais se existem bichos pequeninos,
secaram os riachos, as aguadas
onde pescavam homens e meninos;
não mais se existem bichos pequeninos,
nem peixes não existem mais nos rios
onde pescavam homens e meninos,
(os leitos estão secos, tão sombrios);
nem peixes não existem mais nos rios
– piquiras, lambaris ou matrinxãs –
os leitos estão secos, tão sombrios,
nas beiras não se têm panapanãs;
piquiras, lambaris ou matrinxãs,
não buscam, rio acima, seus berçários,
nas beiras não se têm panapanãs
nem cantam juritis, japus, canários;
não buscam, rio acima, seus berçários,
os peixes que passavam reluzentes,
nem cantam juritis, japus, canários.
que, outrora, ali viviam tão contentes;
os peixes que passavam reluzentes,
nos rios desses povos milenares,
que, outrora, ali viviam tão contentes,
no seu sagrado chão, antigos lares;
nos rios desses povos milenares,
(quem olha não entende ou mesmo crê)
no seu sagrado chão, antigos lares,
um mar de soja é tudo o que se vê!
*
Mutações (III)
Perdeu o tino, toda compostura,
os gestos de nobreza, de elegância,
e agora traz a marca da arrogância,
da sordidez, da insânia, da loucura.
Perdeu completamente o tom, substância,
expondo sérias falhas de estrutura,
e, aos poucos, sua vida se fratura
no lodaçal limoso da ignorância.
Vivendo na maior contravenção,
tirando, do mais fraco, emprego e pão,
afia as finas garras da esperteza.
Assim ficou, senhor de grande empáfia,
(como o chefão de poderosa máfia),
em nome do poder e da riqueza.
*
Seis poemas em homenagem a João Cabral de Melo Neto
I
Anatomista
Escreve
como quem corta carne,
quem esquarteja sonhos,
retalha
a vida
para vê-la por dentro.
Com precisão
tudo examina
e atira fora
as vísceras
Disseca
a base conjuntiva
para chegar ao osso
matéria
que fica
e se mineraliza.
II
Engenho
Procede
como quem corta cana
a decepar as palhas,
ponteiros
e brotos
para passar no engenho.
Gestos precisos
suor e lâmina
alisa os gomos
processa.
Despreza
a bagaceira toda
para reter a essência
garapa
que fica
no tacho da poesia.
III
Engenheiro
Planeja
o esquema estrutural
pilares, alicerces,
no espaço
da mente
a desenhar poemas
Prepara o solo,
retira entulhos,
detritos, refugos,
calcula.
Constrói
no solo da linguagem
deserta de lirismo
em versos
concisos
paisagens de asperezas.
IV
Bagaço
Em terra de Severinos
de justiça desprovida
padecem homens-meninos
e de sal é feita a lida.
A vida é suor e cana,
feita de fome e cansaço,
que seca a seiva e profana
o corpo em dor, um bagaço.
Engenho que mói, tritura
a cana já decepada
não mói o osso, a estrutura,
na roda dura e dentada.
O osso na terra fica
a reclamar seu espaço,
não decompõe, petrifica,
fica mais duro que aço.
Por isso palavra é pedra
que medra na sua lavra.
V
Faca afiada
Entre inspiração e escrita
o gume da faca fria
transmuda palavra em pedra
(não seixo que o tempo alisa)
palavra-pedra-poesia
que de cada aresta medra.
A mesma e precisa faca
que extirpa brotos de cana
e a carne que encobre o osso
rabisca e cimenta versos
na estrutura desenhada
do planejado arcabouço.
Da extrema mudez da pedra
extrai o grito que corta
canaviais e desertos.
VI
Palavra-pedra
O poeta escolhe qual lado
que quer cantar nesse mundo
uns cantam o mel do caldo
de cana que o engenho extrai,
outros cantam sal que fica
do suor que se junta ao humo.
João Cabral de Melo Neto
dissecou a carne viva
da miséria do nordeste
para enxergar desde o avesso,
na parte substantiva
o osso que guarda o verso.
Sal e pedra, osso-palavra
que o tempo mineraliza
no latifúndio da escrita.
*
Lâmina em riste
folha de cana
sangra boia-fria.
*
Ipês enfloram
matrinchãs sobem o rio
cheiro de moquém.
*
Asas de garça em voo
dois lenços brancos
a dizer adeus.
*
Noites de inverno
o lago se encolhe
saudoso da lua
*
A onça se espia
no espelho do lago
e urra de medo.
*
Avesso
Eu me pergunto: e agora, o que fazer
com essa noite dentro do meu peito,
com esse desencanto quando deito
e encaro o lado avesso do meu ser.
E me interrogo sobre esse viver
a palmilhar caminho muito estreito,
sem nada ver adiante quando o espreito
e tendo, mesmo assim, que o percorrer.
E eu me pergunto – eu sempre me pergunto –
o que fazer, se a vida, em seu conjunto,
tornou-se inverno em plena primavera.
Eu não sei, não, o que fazer do inverno,
do frio que me queima enquanto hiberno
e o gume da saudade me esviscera.
*
Conquista da América
E foi assim que tudo teve início:
o sórdido presente, o gesto, o agrado,
e o espaço, pela cruz, foi consagrado,
em falsa paz, mantendo-se o suplício.
A faca, o espelho, a oferta do machado,
em nome da amizade, benefício,
o brinde que, ofertado, trouxe o vício,
o território logo conquistado.
Com sangue se lavou toda essa terra
e proclamada foi a “Santa Guerra”,
que logo se espalhou pelos espaços.
Oh! América indígena! Que sorte!
O espelho se quebrou de sul a norte,
restando pelo chão seus estilhaços.
*
Grafismo indígena
A tua pele mais parece tela
toda pintada em tons da natureza,
materializa mito que desvela,
antiga história, tanta profundeza.
Em delicados traços, com cautela,
nessas pinturas, feitas com destreza,
uma cultura ímpar se revela,
em meio a um mar de ódio e de incerteza.
Morena tez, trazendo ao cotidiano,
sagradas leis do cósmico, do humano,
toda memória, enfim, dos tempos idos.
Em cada traço, prenhe de sentidos,
uma epopeia! Tempos bem vividos
em território livre, soberano.