Os segredos do domingo! – Por Luiz Renato de Souza Pinto
Luiz Renato de Souza Pinto. Graduado em Letras-Literatura (UFMT), atua na docência desde 1998; Mestrado em História (UFMT) e o Doutorado em Letras (UNESP). Atualmente trabalha com Ensino Médio e Superior (Graduação e Pós-Graduação) no IFMT. Desenvolve oficinas de Escrita Criativa (em verso e prosa); Poesia e Filosofia; Letra e Imagem; Narrativas Curtas; Estruturas de Romance; Literatura e Outras Artes. Possui três romances publicados: Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Xibio (2018), Cardápio Poético (1993) e Gênero, Número, Graal (2017) livros de poemas. Autor também de Duplo Sentido (contos e crônicas), e mais dois no prelo (pequenas narrativas), a exemplo de A filha da Outra (2020), o mais recente. Reflete acerca da construção de personagens, enredos, espaços e tempos, mas, sobretudo, sobre a posição do foco narrativo, os olhares sobre as personagens e as coisas, o entorno.
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Os segredos do domingo!
Até hoje, em pleno século XXI, algumas religiões (cristãs) brigam para que se ordenem, de acordo com seu credo, os dias da semana. Não se sabe ao certo se a semana começa no domingo, ou na segunda. Se o dia para se guardar seria o sábado, ou o domingo. Ou será que na sexta, após o arrebol, já seria sagrado algo além do Happy hour, vulgarizado pelo slogan de: “sextou!”.
Quanto mais eu leio romances, mais me distancio da categoria narrativa de enredo. Até por não me interessar pela confecção de roteiros, talvez seja isso. Prefiro saborear os efeitos dele em minha percepção. Em “Rua do Larguinho”, de Lilia Guerra, o que me chama a atenção de imediato são as referências espaciais e o enxame de personagens femininas que protagonizam a obra.
À exceção do primeiro capítulo, “Ruas são como digitais”, os demais todos se apresentam com nome de mulher. E são em número de dezoito, recortados por referências temporais, que vão de 1976 a 1996, não necessariamente nessa ordem (quase nessa). O que depreendo com relação a essas observações iniciais? Rua e Largo são espaços pelos quais transitam protagonistas e antagonistas. São espaços de inclusão temática e de inserção histórica.
Se as ruas são digitais, traçam questões identitárias, naturalmente. E elas começam em 1984 e avançam para o ano seguinte. Diretas já e início de redemocratização do país são elementos que me vêm à mente e me projetam nesse túnel do tempo de meus vinte e dois, vinte e três anos de idade. Bons tempos não porque foram os melhores, mas porque não voltam mais; e é esse o detalhe interessante de se viver bastante (farei sessenta no ano que vem). Aí surge a Bigu:
Freio de saliva grossa da noite descia pelo queixo e a acompanhava o dia todo. (p. 24).
Um de seus meninos, apelidado Pintassilgo, se aliou a uma cadeira de rodas assim que a anemia falciforme evoluiu, quando ele entrou na mocidade. (p. 32).
A narrativa traz situações-limite em que o cruzamento de dados de pobreza extrema e população negra se completam para a obtenção de um raio-x das desigualdades históricas e ausência de políticas públicas adequadas em nosso país. A referência a determinado jornal pontua historicamente esse quadro: “Solicitava um exemplar do Diário de Notícias”. (p. 35). No vai e vem das datas marcadas surge o ano de 1987, onde se lê: “As marcas de desgaste no aço do espelho pareciam instaladas em sua pele”. (p. 39).
Estou morando de aluguel. E no banheiro de minha residência momentânea observo o referido desgaste no armarinho do quarto de banho. A ação inexorável no aço do espelho não deixa dúvidas sobre a existência, por mais abstrata que pareça, do velho tempo que aponta em “Valdumira” o fato de que “Alguns homens são mesmo incompreensíveis. Na mocidade, desejam por companhia a mulher que lhes desperta ímpetos. Quando sentem o corpo cansado, anseiam por uma que lhes ofereça repouso”. (p. 57).
E segue o baile, ainda no 87. A narrativa tira para dançar a Dinorá, que ocupa o agora seu espaço no Larguinho: “Forraram a mesa capenga e carcomida com um pedaço de cetim mofado. Improvisaram banquinhos com latas velhas de tinta”. (p. 74). E depois vem “Doroteia”, recortada pelo ano da Constituinte, segue para 1989 quando o leitor se depara com “Dalva”. Ah, Dalva. “Atiraram a abóbora-menina nos braços do freguês”. (p. 123). A força dessa palavra composta pelos substantivos abóbora e menina que, justapostos, sepultam a ingenuidade e o frescor da infância precocemente.
“Dolores” e “o rádio companheiro. Fielmente sintonizado à mesma estação”. (p. 144) seguindo o ano de 1990. Depois “Cidália” em que se conhece “O homem do queijo, a Risoneide dos catálogos, Valquíria que faz peças de crochê”. (p. 164). Daí “Dalgiza” e o ano de 1992. “Sá Narinha” – “A patroa não implica com meu cigarrinho. Fuma muito mais do que eu. Mas fiscaliza o tanto de margarina que passo em meu pão e a quantidade de café que bebo”. (p. 199).
Café e margarina regulados. E a gente segue com “Dora”, ainda com o ano de 1992. Depois “Caridade”, “Lila”, “Cassiana”, “Regininha” e “Marília”. Aqui, lê-se que “Notei a capa de um CD à mostra dentro de uma caixa acrílica. Cartola. Dentro da mesma caixa, um livro de poesia. Solano Trindade”. (p. 337). Cartola e Solano Trindade, duas figuras emblemáticas de uma cultura perene. Que me desculpem os muito jovens, mas dispensam apresentações.
Dezenove canções que ajudam a remontar a linha do tempo atravessam a narrativa, o que nos facilita imaginar o rádio executando a cada uma delas. “Risoneide” – 1976, “Terezinha” – 1996; “Esperança” – esta, talvez a última que mova, mas me deixa um fio de preocupação, afinal de contas, “Que é que Nossa Senhora ia fazer com a porra de um útero de cera? “(p. 394). Pronto, falei, quero dizer, escrevi!
REFERÊNCIAS
GUERRA, Lilia. Rua do Larguinho. São Paulo: Patuá, 2021.