Pain du jour, Rua Lopes Chaves, 564. @paindujour [+18] – Por Carla Cunha
Na coluna mensal “Teia Labirinto” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Carla Cunha escreve sobre Literatura Erótica e Pornográfica. O nome da coluna nos remete à trama e aos caminhos enrodilhados que todos nós enfrentamos ao pensar na própria sexualidade. Nessa trajetória, pontos se conectam e produzem uma teia de informações sobre quem somos. Porém, às vezes, não encontramos o caminho e a sensação é como se estivéssemos num Labirinto.
Carla Cunha é paulista, escritora de Literatura Erótica e Pornográfica, mantém um blog com textos sobre o tema e em 2019 lançou Vermelho Infinito.
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Pain du jour
Rua Lopes Chaves, 564
@paindujour
Transei com Quipa às sete horas da manhã e às oito entrei numa reunião pelo computador com o chefe na sala do meu apartamento. O bom de ter um caso com o vizinho em plena quarentena é isso: a comodidade de chegar em casa tão logo termine a trepada. Com Quipa é assim, atravesso o corredor do quinto andar minutos antes do compromisso e na hora certa estou pronta para trabalhar pela internet. Ele mora no 503 e eu, no 513. Ao meio-dia, quem faz o trajeto ao contrário é ele, bate em pontualidade aqui. Hoje transamos duas vezes e assim nossa rotina de confinamento se estabelece: às vezes às sete da manhã; às vezes ao meio-dia, raramente duas vezes, mas há exceções e têm dias que nada acontece. Conheci Quipa na garagem do nosso edifício, quando empurrava com a ponta do pé a tampa do latão de lixo, ele chegou de luvas e me ajudou a descartar os sacos pretos. Desde a loucura do coronavírus estou em casa; quando vou à rua me cuido ao máximo para não tocar em nenhuma superfície. É cansativo, porque qualquer descuido, você pode virar caveira. Em pensar na liberdade não aproveitada meses antes. Agora, a reclusão nos impossibilita o contato, se bem que não é assim. Quipa, por exemplo, foi um presente de Afrodite, é preciso agradecer, com o mundo isolado não é toda hora que encontramos um tipo do nível de Quipa.
Em casa, em isolamento? Perguntei procurando o rosto do homem atrás da máscara. Sim, mais de duas semanas, e você? Hum, já faz mais de vinte e cinco dias. São Paulo tá foda, acrescentei com a voz abafada pelo tecido da minha máscara. Quipa é alto, ar reservado e mesmo com os equipamentos de proteção individual é possível ver sua beleza. Nunca tínhamos nos encontrado, o que achei bem louco, já que moramos no mesmo andar e estou aqui, no edifício da Lopes Chaves, há quase um ano. Seja como for, agora é a oportunidade, mesmo sem garantia de uma aproximação de fato interessante. Conversamos pouco, mesmo assim trocamos os números de WhatsApp para caso de urgência durante a pandemia. Nunca se sabe. Aliás, graças a essa atitude de precaução, tive com quem me socorrer naquela noite, quando de súbito passei mal. Quipa atendeu de imediato o meu chamado e antes de trocar o top e a calcinha, que uso para dormir, batia a minha porta. Contei sobre o pânico que vem me assolando durante o sono, a dificuldade de respirar, o medo da morte, ele entendeu meu desespero e como esperado me beijou. Retirei o livro “120 dias de sodoma” de cima do sofá e trepamos ali mesmo. Posso dizer? Gostei. Quipa, naquela noite, me ajudou a perder o medo da morte e para agradecê-lo chupei suas bolas, mas não de imediato. Primeiro, lancei da boca a ponta da língua, certificando que Quipa me olhava a cara. Aos poucos, fui aproximando os lábios e quando de fato o toquei, vi o corpo nu do homem se contorcer, as veias do pescoço saltarem, os músculos da face contraírem, enquanto ele me suplicava em francês para que continuasse, “Oh!, vai Mon Amour, mais um pouco, sou todo seu, todinho”. Escutava os pedidos do meu novo amante adorando aquele jogo, no qual ele parecia desejar cair. Com toda a calma do mundo, abocanhei uma das bolas enrodilhando a língua na anatomia convexa e depois, com destreza, suguei a outra, introduzindo os dois bagos para dentro da boca. “Oh! Mon Amour, o que é isso?” Quipa gritava em desatino, e foi interessante ver o jeito que ele se entregava ao nosso sexo. Aliás, a excitação foi tal que gozou sem nem ao menos tocar o pau. Ali, entendi a façanha do ato e que Quipa me socorreria dos meus medos e desejos na madrugada. No dia seguinte, ao ligar o computador para começar o trabalho, pude confirmar a hipótese quando a padaria da nossa rua, Pain du Jour, me entregou quantidade considerável de brioches, baguetes, croissants e pão francês. Busquei o saco na portaria do edifício, e enquanto subia o elevador com o pacote quentinho nas mãos me passou uma pornografia bizarra pelos pensamentos. Quipa havia cedido aos meus apelos insanos e incoerentes na madrugada, depois enlouquecido com nosso sexo, será que deveria testá-lo, ou não? Mandei uma mensagem de agradecimento pela gentileza no café da manhã e ainda acrescentei que precisava de um grande favor, fundamental para não sofrer de pânico durante a noite, estava com medo do que poderia acontecer comigo caso ele não aceitasse meu pedido. Ele visualizou minha mensagem no WhatsApp, mas demorou a responder. Talvez tenha desconfiado o que na verdade eu queria. O fato é que uma hora depois se colocou a minha disposição. “Oui, oui! comemorei em francês. Nesse momento, revelei minha angustia para Quipa, não aguentava mais ficar em casa, trancada, longe das calçadas de piso quadriculado, das orquídeas penduradas na árvore da frente do prédio. Sinceramente, vinha daí meu surto, da vida trancada num apartamento de 60 metros quadrados, precisava sentir o barulho do meus sapatos ao tocar o chão da rua, o vento bagunçar meu cabelo. Você entende, Quipa? Estou a ponto de surtar, saca? Claro Mon Amour, o que você sugere? Diga-me, por favor, ele me perguntou ansioso. Então ao ponto: Vamos nos encontrar às três da manhã na esquina da Padaria Pain du jour? O que você me diz, Quipa? A rua vai estar deserta. Sim, vamos, claro que sim, Mon Amour, só isso que você precisa? Respondi: Sim, só!, e agradeci, merci, mas Quipa, preciso dizer, não vamos sair do edifício juntos, espero você lá, venha de preto, use boné ou chapéu, e não esqueça da máscara e das luvas. Até lá! Ele disse: Tudo bem! Depois daquela troca de mensagens, sinceramente, não consegui mais me concentrar nos números, nas planilhas e nos relatórios do escritório, meu pensamento de cinco em cinco minutos me levava para a esquina da Pain de Jour. Perto da meia-noite, tomei um banho demorado, a água quente e o shampoo de camomila lavou meu cabelo, e esfreguei meu corpo com o sabonete de capim-limão: as axilas, os peitos, a boceta. Posso dizer que nunca estive tão cheirosa, sem falar no creme de amora que cobri a pele antes de colocar o vestido sem calcinha. Duas e meia da madrugada, deixei o apartamento e me plantei no degrau da porta da Pain du Jour. Parece que a cidade de São Paulo está levando a sério o confinamento, pelo menos durante a noite. Pois bem, não demorou para que ele aparecesse, vestido tal qual minhas recomendações. Quando chegou perto, corri ao seu encontro, retirando suas luvas e conduzindo seus dedos para baixo do vestido. Ele não recusou, levando-me para um canto na lateral da Pain du Jour, justo para ter mais liberdade na manipulação do clítoris, e mostrando uma habilidade que não tinha percebido na primeira vez. O homem de preto de chapéu é o amante perfeito. Ajoelhou-se a minha frente, afastando as minhas coxas para enfiar a cara na boceta. Eu cuidava o movimento na rua e o meu medo da morte era agora o medo de ser pega, num ato de depravação, por andarilhos ou mesmo a polícia. Acho que foi bem por isso que gozei tão rápido, no tempo certo, pois ali perto uma viatura tocou a sirene e nos desgrudamos de imediato. Corri para o saguão do edifício, já ele atravessou para o lado contrário, na outra esquina. Ainda chamei seu nome, mas em nenhum momento olhou para trás. Subi os degraus do meu prédio correndo, pensando porque Quipa não tinha vindo comigo. Precisava perguntá-lo no próximo encontro, era curioso, já que parecia um homem de atitudes previsíveis. Fiquei com aquilo na cabeça, uma aventura tão bacana, arriscada pelo próprio ato em si e pela pandemia, merecia comentários. Além disso, seria interessante rir junto dele da nossa loucura, mas Quipa fugiu. Já eu dei boa noite ao porteiro e quis subir logo, precisava descansar, no outro dia, acordaria cedo para uma reunião. Foi bem aí, que vi da porta do elevador, Quipa saindo todo vestido de preto, já sem o chapéu com um saco da Pain du Jour e uma garrafa de vinho nas mãos.
(Capa: Leda e o cisne (1740), de François Boucher).
FernAnda
Carla, estou SIMPLESMENTE amando essa coluna na ruido! A minha favorIta! Fiquei superfã da sua escRita, já qUero encoMendar seu livro! Sucesso!
Carla Cunha
muito Obrigada Fernanda