Pandemix: o último sopro
“Pandemix: o último sopro” é uma curadoria realizada por Divanize Carbonieri e encerra o ciclo “Pande” da Ruído Manifesto, com poemas e textos em prosa sobre a pandemia de coronavírus e suas consequências. Foram 6 Pandepoesias e 6 Pandeprosas. O Pandemix vem reunindo poesia e prosa, sob a ensígnia do poderoso número 13, representado no tarô clássico pelo arcano da Morte, símbolo muito mais de transformação do que de extinção. Esperamos que essa energia transformadora possa revigorar o nosso país, fazendo com que passe desse momento difícil para uma situação melhor. Agradecemos a todxs xs autorxs que participaram do ciclo e a todxs xs leitorxs que nos acompanharam até aqui.
Esta edição traz poemas e textos em prosa, respectivamente, de Márcia Barbosa, Iatamyra Rocha Freire, Flávia Helena, Silvia Schmidt, Flávia Andrade, Izabela Drozdowska-Broering, Paulo Sesar Pimentel, Juliana Lopes, Sanchez e Guilherme Fraenkel.
***
Solidão
Canto. Palmas.
Isolamento…
Pior. Pesado.
Pandemia…
Gente. Paciente.
Sobrevivente…
Remédio. Cura.
Vacina…
Ar. Paladar.
Morte.
Dia. Semana. Mês.
Quarentena…
Estatística. Nome.
Pessoa…
Medo. Medo. Medo.
Tempo.
Até quando?
(Márcia Barbosa)
*
Amanheceu chovendo
o vento frio sendo contraponto no meu corpo embrulhado nos lençóis
calorzinho, aconchego
parece que abraço sóis dentro de mim
sim, minha humanidade acordou mais viva
ainda há o receio sobre o que acontece lá fora
a empatia aos que perdem os seus para o vírus
ainda há a tristeza pelos amigos que partiram
mas, preciso manter esse calor
essa chama
como luz de esperança e amor
para que possa sobreviver aos dias que seguem.
(Iatamyra Rocha Freire)
*
Depois da pandemia
O dia não amanheceu
De completa claridade
Apesar das nuvens,
É possível abrir as janelas
Crianças brincam no playground
Adultos jogam tênis nas quadras de saibro
Velhos, em cadeiras de rodas empurradas por cuidadores,
Compartilham seus desânimos no jardim
A vacina chegara
Vinha dos EUA por 1500 reais a dose.
O dia não amanheceu
De completa claridade
Por causa das nuvens,
Dolores leva na bolsa um guarda-chuva
No rosto, máscara de proteção
Dentro do ônibus, pensa nos filhos sozinhos em casa
A patroa vai querer a varanda limpa e
Almoço especial para comemorar o fim da quarentena
Chega ao destino
Duas horas de viagem pelo salário de 1500 reais ao mês.
Na portaria,
A empregada tira a máscara
E se identifica pelo interfone
O segurança autoriza a entrada.
A imunidade é privilégio dos condomínios.
(Flávia Helena)
*
Quarentena 30 dias. Buscar na fonte o ser sua força e subjugar no ventre o vírus sua potência em verso-inversos. Tem sido estes meus dias, um mês em recolhimento literário. Leio escrevo penso.
Virem-se
vermes
vomitam
vírus
vilipendiam
vilas vilarejos
vingam-se
visitam velhos
vítimas
vorazes
vulgares vermes
vociferam
vozes vagam em vão
viroses ventos vaporizam
viralizam nas valas
vigas vazadas
vazias
vilas veredas&vinhas
vitórias e volúpias
vendas vis
verniz de violas
versículos&velas
virgens veios&votos
vogais volumosas
vocacionadas
ventres vulgares
vulvas velhas
vulcões vazam
v.i.d.a.s vivas/
virem-se velozes
volvam varram
vaguem verves
versão vindoura
desta vinagreira
violácea&violenta
Pocinhos do Rio Verde , 12 de abril de 2020
(Silvia Schmidt)
*
Epiglote
20/5/2020
agora o que resta?
nos tiraram o abraço
o ar
a fuga
se antes chorávamos os sem teto cobrindo
agora
além do choro da ausência do muro que protege
Choramos a rua
vetada
nos tiraram as estradas a calçada a vizinhança a feira
o mar
restam os devaneios
nos roubaram os sussurros em meio a barulhos de concreto duro
Aquele que nos carregava para nossas multidões
Antes invisíveis – agora desejáveis
Nas massas
o barulho disforme que antes nos obrigava a lamber ouvidos em palavras gritadas
cala agora desde dentro da nossa traquéia
resta ela
A traquéia
intubada
vetado o vento
resta o ar mecânico e as torres caras do oxigênio comprado
restam mãos cansadas
que pulsam bravamente os corações desistentes
restam corações sem respiradores
não foram sorteados na loteria dos vivos
desmerecidos
envelhecidos
nos tiraram avós e filhos
Nos levaram os abraços e as flores no cemitério de partidas
que já antes nos negavam
Choros?
Já diziam feios
os lutos?
Fraquezas de quem vive
Vetado o adeus
Agora e lá ontem
enterro do luto
lá e hoje
resta
a fraqueza resignada e a abafada perda
a traiçoeira perseguição da palavra trocada
se choraria a saudade de quem amo e foi
resta engolir e ficar
negação da dor
moral do declínio
restam as fugas para dentro
a deglutição obrigatória
do intolerável
nos levaram as ruas da revolta
Roubados os narcisismos
agora exaustivos
roubada a perspectiva
a ilusão da certeza
da planilha de meses vindouros
Restam memórias e pesadelos
agora bem-vindos
Restam
Os filtros do ar
olhos
o embaçado do vidro para ver o mundo
inacessível
e resta
o silêncio
(Flávia Andrade)
*
Neblina
Toma a sua dose de neblina, diz mãe. Vem aqui, já – grita ela engolindo o choro. Sinto por ela. Pois a mãe não gosta de me forçar! A mãe não gosta de abrir com força a minha boca, não gosta de segurar firme a minha mandíbula, tão firme que até as pontas dos dedos dela ficam brancos. Ela só quer o meu bem, só quer me nutrir, me proteger da realidade, da brutal, triste realidade pandêmica. Abre já está maldita boca – ela grita comigo – abre, toma, você sabe que precisa tomar antes de sair de casa! Então eu tomo, de compaixão por ela, essa insossa neblina, neblina escorrendo pelo meu queixo, lágrimas escorrendo dos brancos olhos da mãe. E não adianta cuspir ao dobrar a esquina, pois lá fora já tem um mar de neblina e silêncio cobrindo nesta nova paisagem as perdas, as lacunas, as gretas.
(Izabela Drozdowska-Broering)
*
Sinais
A mulher fecha a janela do carro poucos metros antes de parar no cruzamento. Ajeita o cabelo desarrumado pelo vento, sentido como um dos prazeres proibidos pela prefeitura. Um rapaz, sem a perna esquerda, apoiado em uma muleta improvisada, estende a mão, meio avermelhada, quase encostando no vidro, a poucos sentimentos de seu rosto. Sem olhar, a mulher ajeita a máscara que lhe cobria apenas o queixo, colocando-a sobre nariz e boca; confere o ar condicionado, arruma os óculos, que lhe cobrem das bochechas à testa, imóveis. Ela olha para frente, pelas lentes, pelos vidros e, sob o manto da tripla camada de tecido, três poderes instituídos que lhe protegem, sorri e agradece a Deus o blindado do carro, das contas correntes, da vida no condomínio fechado. Sente um aperto no peito de saudades do Mediterrâneo no começo do ano, antes desta loucura incontrolável. Ajusta o rádio em uma estação gospel, tosse muito, até quase perder o ar, e acelera ante o sinal, para ela, aberto.
(Paulo Sesar Pimentel)
*
Monóculo
A imagem dos dois havia ficado estática, como um negativo de uma foto jamais revelada. Caso a colocasse em um monóculo, se poderia ver aumentar.
Imaginava quando reencontrasse a irmã e o sobrinho: teriam mudado, cabelo, humor, rosto, voz… As chamadas de vídeo eram incompletas. Somente o rosto, sempre imenso imerso naquela tela, e sujeito às intempéries da conexão de internet. As mensagens sempre vinham incompletas, com impressões permeados por choros e depoimentos de autoridades. Nada resolvia. Nem a pandemia, varrendo países, nem a limpeza da casa vazia, que, inexplicavelmente, se empoeirava, manchava.
As sensações se ampliavam. Além da saudade, a vontade de fazer algo mais do que vinha fazendo. A necessidade por fotografar, hobbie que se encontrava oprimido entre a carga horária diária de oito horas adicionadas às três dentro de infindáveis transportes públicos, crescia. O trabalho invadira a casa, até ser suprimido. Ela, demitida. Ele, deus trabalho, substituído. A câmera andava com ela pela casa, registrando os gatos, as samambaias e os raios de sol. E as fotos deles. Fotos sobre as fotos. Monóculos de momentos felizes passados. Com as canetas, tecia metros imaginários cogitando que o sobrinho crescia. E era com caneta azul que bordava novos fios de cabelo à irmã, que iam se trançando. A cada chamada de vídeo, novos traços ganhavam as fotos dos retratos. Sabia que não estava próxima, sabia que não estava perto do que se passava. Aumentava. Se incompletava no decorrer dos dias.
A imagem dos dois havia ficado estática. Os monóculos em sequência eram o negativo de um filme. Imaginado. Amado.
(Juliana Lopes)
*
Bartlebiana pandêmica
A cama, o cobertor e o travesseiro formam um casulo. Exercem uma força inexplicável sobre e sob o corpo. Embora seja possível rolar de um lado para o outro dentro dos limites do colchão, não consigo reunir forças para erguer o tronco. Nem vale a pena tentar. Entendam, não há nada de errado comigo – a questão não é a capacidade de sair daqui: poderia muito bem me levantar e ir até a cozinha, por exemplo. O problema é a vontade – ou melhor, a falta dela. É como se houvesse uma camada invisível prendendo o corpo. Uma camada que suga toda e qualquer possibilidade de interação com o mundo ao redor. Estendo as mãos e quase consigo tocá-la. Quente e maleável como um cobertor. Quente e maleável como o cobertor que cobre minhas pernas. Um sintoma inconsciente de uma constatação bem consciente.
Nem sempre foi assim. Juro que tentei ser um prisioneiro mais ativo durante as primeiras semanas de quarentena. Procurei na internet maneiras de exercitar as pernas, comecei a estudar Espanhol e até organizei todos os livros na estante, tamanha era a vontade de resistir ao sedentarismo naturalmente propiciado pelos longos períodos em casa. A distância do mundo externo era um mal a ser mitigado. Entretanto, conforme os dias foram passando, o magnetismo da cama foi se tornando mais potente. Não demorou muito para que compreendesse sua origem. A questão é: pra quê? Pra que encontrar novas atividades caseiras? Pra que atenuar o isolamento? Se não podemos sair de casa, não sair da cama parece o próximo passo lógico. Além disso, o que estaria perdendo ao fazê-lo? Desde que o isolamento começou, consegui organizar as tarefas cotidianas de tal modo que, com exceção do banho e da comida, posso muito bem ficar deitado o dia todo. O trabalho de escritório que agora realizo à distância requer apenas um computador – repousado sobre as coxas – e uma boa conexão de internet. Bed office. Assim, ficar deitado aqui sentindo essa camada de veludo conter meu corpo não parece algo necessariamente ruim.
Dizem que devemos tirar boas lições da pandemia e do fato de estarmos presos em casa. Copo meio cheio? Talvez; mas acho mesmo que aperfeiçoei uma habilidade crucial em meio a tudo isso: a possibilidade de existir e até mesmo agir como um ser social deitado na cama. Há aplicativos para isso. Sim, o encontro semanal com os amigos agora é virtual. A distância entre os corpos não diminui a experiência em absolutamente nada: as pessoas são as mesmas, a marca de cerveja é a mesma e os assuntos são os mesmos. Até brindamos pela webcam! A não-presença é apenas um detalhe. Uma daquelas instâncias em que a alteração da forma em nada prejudica o conteúdo. O mesmo poderia ser dito em relação a quase todas as adaptações que tivemos de fazer nessa quarentena. Se pararmos para pensar, não faz sentindo associarmos uma visão negativa à distância. Do ponto de vista moral, não há nada de errado com ela. Trata-se apenas de uma outra maneira de viver. Sim! Viver à distância: a metade do meu copo meio cheio! Em lugar nenhum está escrito que a vida deve ser vivida em pé e ao lado de outras pessoas. É isso! Deveria fundar um movimento, uma religião, um culto. “O deitismo”. “O camismo”. Algo assim. Rejeitamos radicalmente a obrigação de ficar em pé! Rejeitamos radicalmente a ditadura da presença! Rejeitamos radicalmente a imposição da proximidade física! De agora em diante, tudo poderá ser feito à distância! As relações sociais e as relações de trabalho terão de se adequar a essa nova e excitante lógica!
É claro que ideias tão radicais assim sofrerão muita resistência por parte dos incrédulos, até mesmo dentro de nossas casas. O colega com quem divido o apartamento, por exemplo, não entende o comportamento que tenho exibido nas últimas semanas. Diz que justamente por estarmos isolados é que devemos dar mais valor à época em que ainda podíamos nos abraçar. Diz que o ser humano não nasceu para viver trancado. Nada mais natural, já que desde pequenos somos ensinados a procurar a companhia dos outros, a privilegiar o olho no olho. Pois eu vos digo, irmãos, não caiam na tentação da companhia! Fujam dos olhares ameaçadores. Esqueçam a época em que ainda tínhamos de nos locomover usando as pernas. Tais tempos sombrios serão conhecidos no futuro como a verdadeira pré-história da humanidade. Pensem bem: sempre reclamamos da qualidade de vida nas grandes cidades, não é mesmo? Já faz tempo que a palavra estresse entrou no nosso vocabulário. Finalmente a solução veio em forma de vírus! O deitismo/camismo chegou para libertá-los das horas perdidas no trânsito, da violência, da poluição! O futuro é a distância, o futuro é uma sala virtual habitada por inúmeras miniaturas de webcams onde cada avatar espera sua vez de abrir o microfone! Tudo de maneira ordenada e harmoniosa! O futuro é brilhante!
Já está na hora de reabastecer a dispensa. É a sua vez de ir ao supermercado. Feita uma onda, a voz do colega invade o ambiente, interrompendo a revolução que desenhava em minha cabeça. A intensa alegria de uma lembrança inesperada toma conta do meu ser e tudo parece mais colorido, mais vibrante. Abre-se o casulo. Respondo alegremente, oferecendo-me para realizar a tarefa bissemanal. Levanto da cama e acendo a luz. Sim! Como pude me esquecer?! É a minha vez de ir ao supermercado! Esqueça a cama, o cobertor e o Wi-Fi. Que se fodam minhas ideias de religião, o boteco online e os afazeres do escritório! Acima de tudo, que se foda a distância! É hora de tomar um banho, colocar minha melhor roupa e vestir a máscara mais confortável para gozar da liberdade de caminhar até a esquina carregado de sacolas ecológicas! Já posso até sentir minhas mãos guiando um carrinho enferrujado e barulhento pelos corredores de laticínios! O ar puro do oceano vindo da seção de peixes! A emoção de cruzar com outras pessoas mascaradas numa grande comunhão pandêmica! A misteriosa distância de um metro e meio na fila do caixa! A sensação de proteção ao chegar em casa e lavar cada batata! Sim, era isso que faltava em minha vida. Animado, inicio uma lista mental de tudo que precisamos. Arroz, feijão, ovos, álcool em gel…
Eu prefiro fazê-lo.
(Sanchez)
*
Depois da chuva
(29/05/2020)
Hoje, a partir da pandemia do Corona vírus COVID-19 e de todas as medidas necessárias para sobrevivermos passamos a viver uma provocação da natureza no que diz respeito à forma de nos relacionarmos.
Repensarmos nossa presença no mundo e a forma como interagimos com a vida se tornou prioridade urgente e, à medida que avançamos para solucionar este desafio, descobrimos muitas possibilidades e passamos a questionar algumas verdades estabelecidas.
Muitos de nós tivemos que reinventar a maneira de viver e neste exercício intenso tropeçamos em alguns conceitos que exigiram revisão para sermos aptos a seguir com capacidade produtiva e equilíbrio psíquico. Acredito que palavras como presencial, virtual, online, à distância, real, normal, verdade e mentira estejam entre os conceitos que carecem de urgência de redefinição.
Fisicamente isolados, mas cheios de necessidade de nos mantermos interagindo uns com os outros, nós migramos para o universo paralelo do mundo digital através das tecnologias da informação e fomos obrigados a revisitar conceitos e preconceitos em busca de novos caminhos de interação.
As interações através de redes sociais, os ambientes de ensino à distância e as plataformas que disponibilizam conteúdos ganharam a súbita atenção de gigantesco exército que vivia alheio às possibilidades que a vida digital oferece. Uma nova corrida do ouro teve início e centenas de produtores de conteúdo intensificaram suas presenças digitais enquanto muitos outros ingressaram no mundo até então desconhecido.
O virtual virou o novo real e o online se torno uma necessidade concreta desafiando nossas habilidades de abstração do pensamento e exigindo a construção de novos hábitos e a conquista de novas habilidades.
O analfabetismo digital ficou explícito. Assim como muitos preconceitos e os abismos entre jovens e idosos, ricos e pobres, letrados e não letrados. Um novo paradigma está estabelecido definitivamente na humanidade oferecendo oportunidades incríveis e desconstruindo sistemas sólidos até então.
Novos desafios surgiram à medida que passamos a repensar a humanidade a partir dos modelos de relação que hoje buscam o menor contato físico possível mas que exigem interação constante e contínua em plataformas digitais ágeis e seguras.
Ansiedades, medos, paralisias e acelerações nos tomaram de assalto à medida que buscamos superar o momento criando uma normalidade temporária na expectativa de que, em breve, retornaríamos à normalidade conhecida e segura.
À medida que o tempo passou e os dias de isolamento viraram semanas passando a exigir modelos mais permanentes, eficazes e eficientes, começamos a rever e discutir nossos modelos de interação para considerar o virtual como uma necessidade e não apenas como uma ocupação de quem não tem nada a fazer ou que foge de sua realidade.
É claro que cada parcela da civilização humana está vivendo estes dilemas em níveis diferentes, que há aqueles que já estavam engajados nesta virtualidade e que alguns passarão este momento e seguirão ausentes no mundo virtual.
Entretanto, temos uma certeza que julgamos irrefutável. A humanidade jamais retornará à normalidade anterior e tão pouco se manterá no ponto em que está.
Seguiremos com um sabor azedo e instigante de novas possibilidades e com o desejo de retomarmos algumas dimensões presenciais com mais liberdade e flexibilidade.
Seguiremos mais conhecedores dos processos de exclusão promovidos em nossa sociedade e mais conscientes da necessidade de revermos normas e papéis sociais. Talvez tenhamos até mesmo que adaptar legislações e modificar culturas.
Parece que encontros virtuais passarão a fazer parte de um novo normal e que a própria ideia de presença será revista. Já conseguimos ver pessoas reunidas em uma mesa tendo alguns lugares reais substituídos por um quadrante em um enorme monitor colorido conectado à internet.
Ingressos para shows online estarão disponíveis com mais frequência e plataformas de apresentação em tempo real poderão ganhar força eliminando a exclusividade do mundo das camgirls. Pagaremos créditos para ouvir poesias e músicas em tempo real e a modalidade de homens e mulheres nuas será apenas mais uma entre dezenas de opções de shows a serem consumidos ao vivo. Novas profissões poderão surgir. CamPoets, camSingers, camPerformers, entre outros levarão entretenimento, arte e cultura através de shows exclusivos em tempo real.
Consultas, aulas, aconselhamentos, consultorias e assessorias passaram a ser realizados com mais frequência pela internet e um novo natural eclodirá enquanto expressão humana demarcando uma nova era para a humanidade que começou a aprender sobre a popularização da conexão humana através das vias digitais.
O tempo está sendo redesenhado pela humanidade e a ideia de alta disponibilidade instantânea parece perder um pouco de espaço para as interações contínuas em um ambiente de múltiplas plataformas e possibilidades. Talvez tenhamos concluído que não damos conta de estarmos disponíveis em tempo real para todos aqueles com quem interagimos para existir mas que podemos ter conexões de qualidade se reduzirmos as expectativas de interação e diluirmos os contatos através de interações frequentes que nos permitam priorizar assuntos, tarefas e pessoas.
O conceito de normalidade cede ainda mais espaço para a ideia de diversidade e o respeito torna-se uma bandeira ainda mais valiosa que estabelece públicos ou que delimita e exclui comunicadores incapazes de perceber que não existe mais uma única verdade mas sim tendências de pensamento e de atitude.
Ser humano passa a ser uma tarefa um pouco mais complexa ao sairmos da geolocalização de nossas presenças e abraçarmos a localização por interesses, propósitos, gostos e sintonias rompendo as fronteiras geográficas e até mesmo as linguísticas e culturais.
Nossas aldeias, mais do que nunca, passam a ser definidas de forma abstrata. Giram em torno de si mesmas e nos convidam a sermos além de nossas expressões físicas. A partir deste ponto teremos que repensar todos os ambientes em que estamos inseridos na sociedade.
Depois desta chuva que traz novo ânimo ao solo cansado e seco da humanidade indiferente e desatenta percebemos que é possível rompermos a casca que nos constrange enquanto sementes de uma humanidade justa, boa e generosa. Talvez a resposta natural de Gaia, a mãe terra, às nossas súplicas tenha sido a provocação para pensarmos de forma diferente a partir da imensidão de recursos que já fomos capazes de construir ao invés de seguirmos nesta busca desenfreada pelo que nos falta.
Talvez a chave para uma nova era de felicidade e de justiça social resida na desconstrução de normalidades e na construção de novos padrões civilizatórios utilizando prioritariamente o que já conseguimos construir e buscando usar com mais sabedoria, eficiência e eficácia as possibilidades disponíveis.
(Guilherme Fraenkel)