Pandepoesia: às portas de abril
“Pandepoesia: às portas de abril” é uma curadoria feita por Divanize Carbonieri. Como estão reagindo es poetas conforme a pandemia de coronavírus se espalha pelo mundo? Passamos março inteiro vendo-a se agravar dia a dia em muitos países, mas sabemos que o pior, principalmente no caso do Brasil, ainda está por vir. Que tipo de poemas essa situação suscita? Abaixo, uma seleção de onze poemas escritos durante esses momentos.
Os poemas selecionados são, respectivamente, des seguintes autores: André Ricardo Aguiar, Edson Flávio Santos, Juan Terenzi, Andreza Pereira, Lia Sena, Felipe Nascimento, Ricardo Leão, Marcelo Adifa, Ana Paula Dacota, Ângela Coradini, Fábio Saravy.
***
SARTRE EM TEMPOS DE CORONA:
O INFECTO SÃO OS OUTROS
(André Ricardo Aguiar)
*
festa
convid-19
Mas
fique só
(Edson Flávio Santos)
*
querem saber o
que é a contaminação
comunitária:
koinonía
koiné
e talvez coito sem mé
puteiro sem álcool
para sermos mais
exatos.
a koinonía foi dita
e amplamente fodida
na política aris
to
té
li
ca.
mas ela ainda não
soube entrar nos bulevares
da vereda da outra calçada
porque a koinonía
sempre foi pouco
por trás conhecida.
(Juan Terenzi)
*
Cume
Presos em gráficos
olhamos do sopé da curva
o iminente cume
Ainda que desatados
importa-nos passar do alto
com todos à mão
(Andreza Pereira)
*
quarentena
por quatro segundos espio
o ventre livre da aurora.
por quatro minutos
um café
e um resto de brisa
descomposta.
por quatro horas
intermináveis ladainhas
nas notícias que chegam.
por quatro dias
anseio.
por quatro noites
desejo.
por quarenta horas
por quarenta dias
o fantasma do medo.
(Lia Sena)
*
Nunca mais senti a rua.
Com as barrigas de gatos, pretas brancas e laranjas.
Com sua tendência à miséria.
A miséria é deusa rainha do xixová,
São todos filhos dela, a riqueza é uma invenção humana.
Nunca mais senti a rua.
Um vento ao rosto,
A buzina, o carro,
Reinventando a vida.
Minha morte comendo cará,
Revolvendo a terra ao redor de casa.
Ofereço café a ela,
Um respeito quase que oriental, pelas coisas que estão além de mim.
Comecei a conversa:
“Nota as ruas vazias? Tem trabalhado bastante?
-Tudo que tenho feito é trabalhar com terra. É o berço e sepulcro de todas as coisas.
-fala da dissociação quântica das coisas? Tudo é um e um é tudo?
-sim, do ciclo, moinho cruel da vida, os mais doces dos momentos foram feitos por mim
– e das pessoas que vão? O que fica?
– fica a saudade meu caro. Me aproprio da presença física, mas não sou capaz de roubar afetos, lembre-se, ainda mais que é jovem, o tempo é um só”
Ela me ofereceu o cará,
Disse que não precisava.
Solidão dessas paredes
Mas oh yes temos banana
E Torquato Neto para ler
Quase uma tragédia que Eurípides sofreu
(Felipe Nascimento)
*
QUARENTENA
(a Divanize Carbonieri)
Leio agora, entre os artigos,
Notícias sobre o vírus.
As ruas, bairros, distritos,
Estarão bem vazios?
Os padres e os presbíteros
Não celebram batismos?
No horizonte sinistro
Há tenebrosos signos.
Ao longe, vejo abrigos
Logo através dos vidros.
Por que escrevo dísticos
A este mundo falido?
Já não conheço os sítios
Nos cantos mais antigos.
Talvez, de um modo cínico,
A vida é só um suicídio.
São bem falhos os mitos
Com que colho o ritmo.
Apenas canto, estrídulo,
O poema em desperdício.
E contemplo os abismos
Ao fim de outro jazigo.
O esqueleto dos riscos
É o pó de nossos vícios?
O cadáver, bem rijo,
Já cometeu um delito?
Aos poucos releio livros
E escuto velhos discos.
Logo repicam sinos
Na catedral dos vivos.
Como ouvir em sigilo
O segredo das tribos?
Como beber o vinho
E abolir os sorrisos?
Como amar sem olvido
O gozo puro e líquido?
Como dizer, bem lírico,
Que há vermes malignos?
Contudo, entre os círculos,
Já escuto passos tímidos.
Já colho, bem distraído,
As flores que fabrico.
Na floresta de lírios
Há delírios de hinos.
E o silêncio é um grito
Que repito aos aflitos.
Do alto dos edifícios
O amanhã é bem nítido.
Pelos campos de trigo
Germinam versos limpos.
(Ricardo Leão)
*
quando se há nos passos
um sentido de morbidade
feito caminhar em ossos e
no berrar o silêncio de ouvir
sabemos da solidão o afago
de quem abraça a desesperança
tudo é silêncio quando
não há quem ouça o aperto
do peito, o grito que irrompe
a dúvida, a óbice, o luto
só há o corpo que cai sem nunca…
o aperto de mãos, o abraço,
o beijo no rosto, os pratos e talheres
jantares de mortos na escuridão
nas ruas os homens de bronze desprezam a morte
abrigam pombos em suas costas e ombros, riem
ainda que não se perceba
o mover de seus músculos metálicos
moscas servem-se em cadáveres, fartas opções,
mortos ontem, hoje, dos que quedaram agora,
o sangue fresco do que era a raça humana
só há na rua uma criança, com seu olhar petrificado
procurando os pais que amolecem na poça de chorume
misturando-se na morte em suas carnes, a fria geleia,
restos do que não comem, cães e urubus
ainda que lhes reconheça as faces afundadas em sujeira
não será fácil lembrar-se do que eram antes do findar viver
tudo muda quando se perdem as referências, tudo muda
e sem que se perceba, o que está em nós…
(Marcelo Adifa)
*
TUDO É UMA QUESTÃO DE TIMING
Meu amor, que pena
A gente terminou antes
da quarentena
Agora estou aqui
Lembrando tudo
o que vivi
Cada um isolado, por si,
em seu apartamento
E não adianta me ligar
Não adianta chamar
Em solidão espero
esse vírus passar.
Vamos viver assim:
cada um com seu tormento.
(Ana Paula Dacota)
*
são oito os dias sem abraços.
dois sem conversas cara a cara.
acordo mais cedo que o normal. irritada.
café. podcast. ovos. trabalho.
não é tédio.
irritada.
tento meditar. durmo no tapete.
café (dois). silêncio completo nos vizinhos.
sento sob o sol na grama de casa. olho a mata sobre o muro.
vento.
escrevo dois poemas, nenhum de amor.
resolvo tirar o pijama.
com um alguém falo sobre apartamentos.
café (três). problemas resolvidos pelo whats.
roteiro discutido pelo celular.
passo álcool no celular.
passo álcool nas mãos.
café (quatro). como meio bolo que fiz ontem.
agradeço pelas roupas não se lavarem, pela casa não se limpar (há anos limpo minha própria sujeita).
confesso a alguém que já organizei todos os livros, todos os armários.
usei a furadeira mais do que devia.
penso em repintar meu muro de branco mais uma vez amanhã, sobrou tinta.
chove. abro toda a casa. é outono.
converso sobre vinhos e desistências.
café (cinco) às 16h10.
lembro que ainda não almocei. cozinho só pra mim.
hoje não verei séries.
desligo o whatsapp-covid-19.
ando. ainda tenho o pôr do sol.
corro. ainda posso atravessar as calçadas quando outro corpo se aproxima.
treino. canso. a irritação some.
monto uma playlist de músicas com sentimentos do momento.
desligo todas as luzes da casa.
estou dançando sozinha no bar (tenho um neon escrito bar em casa).
tomo uma taça de vinho na piscina inflável e sinto frio. é outono.
banho quente.
dezessete igs aleatórios estão ao vivo nesse momento.
parece que o dia passou em branco.
mas não.
faço um diário das sutilezas do dia.
(Ângela Coradini)
*
TANATOLOGIA
o peixe agoniza fora d’água:
joga de volta
ou dá uma marretada.
a garganta coça ao ver um transeunte.
tomo cuidado com as motos encaixotadas.
nem um trago de misericórdia,
nem um abraço,
nem uma trepada.
o carnaval passou,
continuam de máscaras.
surgem tendências
em acessórios e mortalhas.
na cidade lenta, a céu aberto
revoada de aleluias nas avenidas
o plácido olhar da cutia
o ousado vôo raso da garça.
nas tocas, o requintado primata
assiste o julgamento da multidão
imagina autópsias, estertores
com o bisturi da conjuração.
nas ondas de luz o orvalho mortal se revela:
a parábola se eleva e avança no eixo das abcissas.
(Fábio Saravy)