Pandepoesia: Domingo de Páscoa
“Pandepoesia: Domingo de Páscoa” é mais uma curadoria realizada por Divanize Carbonieri. Quarentenades há cerca de um mês ou até mais, es poetas continuam nos fornecendo instantes dessa situação inusitada e tensa que estamos passando. A seguir, doze poemas, respectivamente de Larissa Campos, Luiz Renato Souza Pinto, Alvany Guanaes, Lívia Bertges, Rafael Fortes, Liliane Oraggio, Ana Valéria Fink, Zeferino Alvaro de Andrade, Adilson Vagner de Oliveira, Rafael Mendes, Laura Navarro e Ana Dos Santos.
***
Necessidades
Acabou a água
preciso comprar.
Ligo para o Odilon
e combino a entrega.
Risco água da minha lista
de necessidades,
grudada na porta
da geladeira.
Faço listas,
tenho essa mania.
Abaixo da palavra água,
agora riscada,
outras palavras se acumulam.
Desodorante
Creme dental
Brócolis
Banana
feijão
grão de bico.
Nessas palavras,
vejo uma letra bonita
bem desenhada
escrita com cuidado e
com a mesma caneta preta
que perco e encontro
repetidas vezes,
dentro da mesma casa.
No mesmo papel,
escrevo outras palavras,
em escrita rosa
para diferenciar.
As palavras
que escrevo agora,
se jogam no papel
sem tanto cuidado,
cheias de rapidez
e agonia.
Outras palavras
que me dizem de outras
necessidades.
Abraços guardados
sorrisos contidos
encontros demorados
mãos que se tocam
olhares sem pressa
que se reconhecem.
Quando vou riscar
toda essa saudade
da minha lista corrida
de necessidades?
(Larissa Campos)
*
todo santo dia
a mesma coisa
todo dia
o mesmo santo
todo santo
o mesmo dia
santa coisa
o mesmo todo
(Luiz Renato Souza Pinto)
*
Pandemônio
Paira o desassossego da sentença desde sempre sabida.
O que mudou foi a urgência das notícias
O medo coletivo
A grandeza invisível que ri da blasfêmia da existência (des)humana
Que reclama cuidado
Que exige de mim o que jamais pude dar
Essa inquietação desnuda-me a singeleza do existir mais primordial
Que nunca teve chance
Enquanto loucos e nefastos atravessam a nuvem de lodo imunes ao amanhã
Insisto a porta do casulo que me salvará da minha própria pequenez
Da crença e da recriminação de outros
E quando abro a porta
Acolhem-me os abraços
Que sempre me sustentaram
E na inquietude do corpo
Fecho os olhos ao mundo
Reclino minha alma nesse peito
Gozo desse privilégio de classe e de vida
E mitigo minha culpa em parcas ações
Agora e sempre
Tão insuficientes.
(Alvany Guanaes)
*
Saída
O tempo que consola o
tempo.
O tempo da coragem de sentir,
ir sem vir.
O tempo da lógica na falta da
esperança.
O tempo do arar o corpo
no imperativo,
podado.
O tempo alimenta o sorriso,
o medo
visto
à porta.
O tempo da percepção do
real,
irreal observado.
Tempo, dos tempos –
vai e volta –
o corpo dança
a melodia silenciosa.
Bebe o tempo
do
quase fim.
(Lívia Bertges)
*
Sendas de afeto
A extenuação é um amálgama de lamúria e saudade,
Sentimentos que eu carrego comigo repleto de verdade.
Quando me faltar o chão,
Eu sei que vou me reerguer com a sua mão.
Mão afável e virtuosa,
Sentir-te de uma forma maravilhosa,
Hei de te encontrar nessa vida conturbada
E passar essa terrível hora desesperada.
No afago dos teus braços o tempo espreita,
O vento dos barcos é terrível maleita.
Penso em te reencontrar
E te amar junto ao mar.
(Rafael Fortes)
*
Só
o chão para suportar
o peso do peito
cheio de pavor e perguntas.
A travosa gravidade —
a da força e a dos fatos –
sugando a caixa do coração
num pulso econômico
e no suor espesso
do bicho acuado.
A Bielo-Rússia não fez nada.
As pilhas de corpos sem enterrar
Grudadas nas telas de cristal líquido,
Diante de olhos arregalados e secos.
De bruços, ainda vivo
Encostando a frente no solo
Fazendo gerúndios bem pequenos
Tentando sustar o susto
O sol viu.
Só.
(Liliane Oraggio)
*
Clausura
essa agrura
que supura
– loucura!
essa amargura
pela ruptura
por ora
é só
o que depura…
de fatura:
a cura!
(Ana Valéria Fink)
*
Irmão, não se aproxime
nem mais um passo!
Em tempos de epidemias
Devemos nos manter
Um pouco distantes um do outro
Embora eu queira te abraçar.
Não posso lhe receber na minha casa,
para celebrar a salvação,
Mas oremos todas as manhãs
Ao nascer do sol
E todas as tardes no crepúsculo
Do anoitecer..
Porém, em tempos de guerras ,
Temos que nos unir
para derrotar o inimigo.
Irmão,
Esse tempo vai passar
Vamos poder nos abraçar
E juntos louvar.
Fiquemos unidos.
Não se afaste.
Não se aproxime!
(Zeferino Alvaro de Andrade)
*
Rússia
Quando a tristeza e a angústia nos tomam conta
A frieza da Sibéria se dissolve em doses líquidas
Quase sem perceber a adotamos como aquecimento
De sua força destrutiva queremos golpes violentos
Esquecimento
Nos faz apagar o que nos perturbava
Enlouquece a razão
Embaralha sentimentos
Retira de dentro o bem, o mal, o cimento
Enfraquece a fortaleza pelo tormento
Em instantes, do auge da montanha
Desliza-se pela lama profunda do chão
Resgata-se a altivez, jamais a dignidade
Mas se põe em guarda, até a vez da decida certa
As sensações se ascendem e se afundam
Do sorriso ao pranto em segundos
Da alegria ao lixo numa volta da montanha
Até o prazer pacificador do acidente
O giro incerto da roleta incompleta
A pressão desejada no gatilho
Um tiro do corpo veloz sobre o poste
Lado esquerdo da arma
Chances impróprias da derrota
A autodestruição programada
Sorte, corte, morte
(Adilson Vagner de Oliveira)
*
Estudo sobre janelas IV – quarentena dia 26
Resistiré, para seguir viviendo
cantamos todas as noites.
No grito da criança
repousa esperança dúbia.
Amanhã, quem sobreviver, cantará
uma vez mais: resistiré.
Que não falte ar.
Alguns, já entregues ao medo do outro,
permanecem com cortinas fechadas.
Nós, que mostramos o rosto,
olhamos uns aos outros para
manter viva qualquer camaradagem.
Cada aplauso golpeia o muro
da morte e desesperança.
A casa do horror virá abaixo.
Nos abraçaremos outra vez.
(Rafael Mendes)
*
COVID-19
há um pouco de sangue saindo
dos narizes e falas e bocas e falos
em conjuntura, uma grande faca monstruosa
passou pela garganta do mundo
e então estavam todos à beira
de um precipício
– quando na verdade estávamos sempre
à beira dele –
e então havia ferimentos demais
e nós gritamos ai ai ai eu não acredito
como bois dentro do açougue
mas a efusão supera
todos os cortes
há um susto dentro do sangue de nós mesmos
incapacidade fortuita
o fardo que eu carrego ao levantar da cama
é maior
do que a ponta da lança?
fobia social
dorme de consciência tranquila
(Laura Navarro)
*
O estrondo do silêncio
o mundo parou
mas a terra não parou
de girar
pessoas morrendo
aqui e em todo lugar
sempre foi assim
a roda a girar
a morte e a vida
pessoas nascem
pessoas morrem
mas, dessa vez,
primeiro,
ouviu-se o estrondo do silêncio
medo
…
corpos começaram a tombar
um atrás do outro
como um dominó
comecei a contar os mortos
perdi a conta
um chinês
um italiano
um japonês
uma prece para esses três
uma espanhola
uma nigeriana
uma americana
encontradas mortas
em cima da cama
um brasileiro
um alemão
um estrangeiro num cruzeiro
que não pôde atracar
corpos sem velório
mandados para enterrar
…
o estrondo de uma lágrima
que caiu no chão
um pedido de socorro
de joelhos
uma oração
pedidos foram feitos:
‘fiquem em casa”
e as pessoas obedeceram
e em suas casas
foram encontradas mortas…
silêncio
…
descobriram que a solidão
mata
aos poucos
de repente
descobriram que seres humanos
vivem sem água
sem pão
sem teto
sem coração
…
silêncio
…
um abraço na tevê
causou indignação
um médico e uma presidiária
foram julgados sem exceção!
hoje, essas mesmas pessoas
que julgaram a atenção
imploram por um carinho
um abraço
um aperto de mão
…
o estrondo
que parou o mundo
talvez seja uma lição
talvez seja em vão
não precisamos esperar
por nada
que fica igual a situação
da mulher
do negro
do índio
do gay
da lésbica
das pessoas trans
esses corpos
vêm tombando
na floresta
e no quarteirão
eu também já perdi
a conta
dos que talvez
sobreviverão
ao estrondo
do silêncio
do abandono
e da solidão
morreremos
afogados
no mar de desilusão
esse vírus invisível
não vai te poupar, não!
não tem álcool
nem vacina
não limpa com água e sabão
o estrondo do silêncio
é uma voz dizendo: não!
(Ana Dos Santos)
Fátima Farias
Que bela iniciativa …
A
Os autores convidados são apenas acadêmicos?
Ou poetas de outras áreas tem chance ?
Rodivaldo Ribeiro
Olá, Fátima. Todos são bem vindos, mas passam por uma curadoria antes. Nela, haverá uma avaliação, mas o critério não é ser acadêmico ou não. Você deve enviar seu texto em qualquer formato para colabore@ruidomanifesto.org