Pandepoesia: primeiros dias de quarentena
“Pandepoesia: primeiros dias de quarentena” é uma curadoria feita por Divanize Carbonieri, no caso eu. Muites poetas estão escrevendo seus poemas no calor do impacto da infecção por coronavírus no país. Outres ainda não conseguem escrever, bloqueades pela angústia. Mas é provável que logo brotem miríades de poemas sobre o dia a dia da quarentena, medos e inseguranças enfrentados, mas também alegrias (que sempre as há), nesse período de confinamento. A crise é prima-irmã da criatividade. Nessa primeira leva, selecionamos doze poemas de diferentes poetas brasileires. Alguns mais sombrios ou melancólicos, outros mais bem-humorados ou esperançosos, todos os textos abaixo trazem visões do que é o cotidiano numa situação extraordinária como essa.
Os poemas elencados a seguir são, respectivamente, des seguintes poetas: Elizabeth Olegario, Marcia Dias, Mara Magaña, Marcelo Silva, Nic Cardeal, Maira Garcia, Daniella Guimarães de Araújo, Sérgia A., Cesar Veneziani, Bianca Gonçalves, Divanize Carbonieri e Herô Ricken.
***
Como caramujos arrastam-se os homens.
Cada um carrega nos ombros
o peso do mundo.
Bérgamo para quem nunca viu
nasceu morta.
Contar mortos tornou-se rotina.
«existe uma espécie de quarentena
providencial entre as estrelas»
afirmara Carl Sagan.
A matéria é anterior à vida.
Ruas desertas. Cidades desertas.
Como arrancar a aflição que, agora,
habita o peito do pássaro mudo na gaiola?
É preciso escolher quem vive.
«É assim que é em uma guerra»
Contar mortos tornou-se rotina.
Diante da baixa humanidade
um micro-organismo tem nos ensinado
a (re)descobrir a música.
Descoberta feita há mais ou menos 60 mil anos.
As flautas feitas de marfim de mamute ,
tíbia de abutre e fêmur de urso
engendram novas formas de sociabilidades,
que foram esquecidas pelos homens
«existe uma espécie de quarentena
providencial entre as estrelas»
afirmara Carl Sagan.
A matéria é anterior à vida.
Nos hospitais de Madrid
A cada 16 minutos uma morte
No Irã abrem-se valas comuns para as vítimas
«É assim que é em uma guerra»
Contar mortos tornou-se rotina
Neste inverno
chegou a primavera
quem verá as flores?
para quem iremos colhê-las?
Já não há quem as jogue sobre os nossos mortos.
«É assim que é em uma guerra»,
mas isto não é uma guerra.
(Elizabeth Olegario)
*
Indulgências
Abruptamente, a noite desceu
Cruzou o Globo
Rodou, ruiu e riu da infâmia de ser sol.
Queimou, ela, a linha tênue das verdades.
Separou e uniu as singularidades de ser só
Só eu
Só meu
Só teu
O silêncio grita das janelas fechadas.
Nas ruas, os vácuos de ser chão, céu chuva, choro visível permanecem abertos.
Vai, voa, veemente, o vírus no alarido da cegueira.
De joelhos, os cantos, as danças, as tintas sintonizam-se para recompor a nota harmônica de uma melodia destoada com os rios, as florestas, o ar, com o círculo plural.
Alvitram o ontem, tantas quimeras.
Obsecram as indulgências.
Expurgam-se para tornarem -se incólumes
De uma memória breve
que se vai como a noite.
(Marcia Dias)
*
a peste
a morte anunciada
anda tresloucada
desvairada
não leva mais só a vida
com ela vai
o medo
sentado na frente
deste barco
rumo ao inferno…
nele entram também
a esperança desesperançada
a arrancar cabelos
e gritar blasfêmias
a falta de conhecimento
que dá de ombros
e se multiplica errante
os sonhos
companheiros desde sempre
comparecem desarvorados
as alegrias e os beijos
que não foram dados
recendem tristezas
a morte desesperada
não soma mais as almas
tantas a esperar
pelo embarque
os donos do mundo
lhe acenam com ouro
incenso e mirra
por mais um minuto
por mais um leilão
por mais um golpe
de sorte
os pobres de espírito
desdenham do prólogo
ao epílogo
e caem em descrédito
conformados seguem
os párias da terra
com destinos de fome e dor
que não mudam
e os ceifam antes
do fim
(que a loucura é uma benção)
a morte atribulada
se faz e refaz
na faina de recolher
o resultado
dos podres poderes
: a ela chamam de peste
(Mara Magaña)
*
Dia 3 ou 4 da quarentena expressa em papel e caneta. As ruas estavam vazias, sóbrias, os olhos tomados; o véu dos incrédulos, porém os fatos, como uma raiz se inserem, se instalam além da pele, no osso, na molécula última do tempo.
Pensei que dia será esse? benção? a peste? a quarentena? Fim ou começo? Que estória contarei aos filhos que não tive? O cachorro também morreu de saudade. Presságio! Falou meu pai. Resta-me escrever o festival internacional do medo, ou da solidão de mãos dadas, as linhas suaves do destino carregando meu nome. Entrelaçadas, cruzando-se, equivocadas, pois o novo prospera na garganta do futuro.
E se ergo-me enérgico, como Álvaro, Fernando ou Esteves, o mundo, além da janela do meu quarto, silenciosamente ainda espera.
(Marcelo Silva)
*
QUASE AGORA
Depois a gente esfrega o chão
recolhe os tapetes
ergue os varais com as toalhas e os lençóis
corta a grama que já extrapolou os limites
abre as persianas e deixa chegar outro sol
depois a gente corta o fio
afia a navalha
estende o cordão entre as paredes
pendura as fotografias que sobrarem no baú
precisaremos afinar o olhar – o jeito certo de olhar –
para não perder nenhuma palavra desviada
daqueles olhares estancados da vida
como meros ingredientes do nada
depois a gente chora
enxuga o leite derramado
diz o amor engolido a sete chaves
corre o risco de perder a hora, o trem, a viagem depois do fim
e recolhe cada um dos abraços deixados de lado
na cama, na poltrona, na cadeira da cozinha, sobre o armário
empilha um por um, dobrados e cobrados,
nunca dados, os beijos desejados
por ora, resta-nos a máscara
o lábio amargo
a garganta seca
luvas guardando dedos sem anéis
em mãos mil vezes lavadas em água, sabão e desespero
por ora, já é quase agora
essa pobre senhora desconhecida
estendida no varal entre razões escusas
a vida – por um fio.
(Nic Cardeal)
*
Quando o Corona passar,
o abraço voltará
a ser abraço,
o beijo voltará a ser beijo,
o cumprimento voltará a ser cumprimento.
Enquanto isso
sou saudade
de gente que está perto.
Aprendo esse novo
sentimento.
(Maira Garcia)
*
Ouça a ária na corda sol, mãe
é preciso uma certa paz para fazer um violino ele dizia, esculpir a pedra, segregar os grãos,
um homem lavar sua própria roupa, uma menina cantar pra outra , o coletor de objetos recicláveis passar às dezesseis horas
é preciso uma certa paz para alguém preparar o jantar e fotografar os beija-flores , espantar os aedes insistentes , marcar as consultas, extirpar os cancros
talvez ele chore todas as canções de billie holliday especialmente cry me a river
bem alto, enquanto a água morna lava o corpo e o cansaço
na jarra da sala tem uma rosa semiaberta
deixarei o pão na porta da vizinhança e um bilhete
“estou aqui”
os limões sicilianos amadurecem como se nada os incomodassem
eu umedeço meus olhos pela liquidez do mundo
as carmelitas rezam os umbandistas acendem uma luz que é ouro
os taoistas compreendem
algum lugar estão lendo fábulas para as meninas no jardim
chove sobre a terra porque é preciso
apague um pouco o noticiário, mãe .
(Daniella Guimarães de Araújo)
*
MARÇO
Corre às margens
do meu lugar
o murmúrio
indiferente
das águas
em resposta
desmedida
a um março que
se quis silente
o canto rumoroso
das cheias
em marrom
adere ao cinza
das nuvens
roubando dos poetas
a metáfora
se esparramando
sobre teimosos passos
nas calçadas vazias
em que dançam
vidas por um fio
(Sérgia A.)
*
COVID DIVIDE A VIDA
De carona
no Corona
vê-se a cena:
o velhinho,
coitadinho,
paga a pena…
Quem tem posse
teme a tosse,
sente amena.
Mas o povo
usa o corpo,
contracena.
Vai à luta,
na disputa
nada amena.
É sua sina,
contamina
na arena,
isso enquanto,
noutro canto:
quarentena!
(Cesar Veneziani)
*
ÁLCOOL 70
estar apaixonada durante a quarentena
método eficaz para não preencher o
vazio das prateleiras
método para não
escrever mais
um livro sobre
apocalipse
antropoceno
fim de
mundo
etc.
(Bianca Gonçalves)
*
anosmia
nova palavra aprendida
parece o nome de uma deusa
musa
talvez uma gata
diz o jornal
“Perda de olfato indica 99% de chances de ser coronavírus”
e já não sinto o cheiro
de nada
puxo o ar
percorro os braços com as narinas
nada
mas não é possível
hoje mesmo
senti o odor do álcool gel
tantas vezes nas mãos
não pode sumir
assim tão rápido
do meu lado
meu gato
que não toma banho
e sempre foi perfumado
encosto o rosto
no seu pelo preto
e estou de novo
em casa
(Divanize Carbonieri)
*
QUARENTENA
Minha casa parece um convento.
Aqui tem um fino confinamento.
Um oportuno distanciamento.
Sequestrei-me.
Divorciei-me das pessoas.
Tudo está apartado, afastado,
higienizado.
Limpei armários, limpei fogão.
Dobrei as roupas, virei o colchão.
Imagine, limpei até o chão.
Ouvi minhas músicas.
Revi as fotografias.
Achei um baseado.
Tive um proseado lascado.
Até a dona Larica comeu
um chapeado.
Mas tenho fugido do espelho.
A pessoa que me olha
quer conversar,
contar seus pentelhos.
Nesta DR me daria um conselho.
Neste mato tem coelho
e não meta seu bedelho.
(Herô Ricken)