Pandeprosa: até quando?
“Pandeprosa: até quando?” é mais uma curadoria realizada por Divanize Carbonieri com minicontos a respeito da pandemia de coronavírus e suas consequências. O mês de maio avança e, ao contrário do que pensávamos no início, estamos longe ainda de uma mitigação na curva de contágio e mortes. A pergunta que todxs se fazem agora, sobretudo no Brasil, em que a pandemia segue sem controle, é até quando vivenciaremos essa situação limite?
Para esta edição, foram selecionados minicontos, respectivamente de Danielle Costa, Lucas Soares, Juliene Leite, Marta Cocco, Vanessa Ratton, Mô Ribeiro e Neide Silva.
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Sufoco
Após uma mão invisível apertar o peito e roubar o ar, máscaras de tecidos ficam sobre o rosto para que outras caiam.
(Danielle Costa)
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Silêncio
O silêncio lá fora é o grito de medo que pulsa aqui dentro.
(Danielle Costa)
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P.A.N.D.E.M.I.A
Na cidade pacata, cercada pela selva de árvores, ali ele estava.
Na cidade grande, cercada pela selva de pedras, ali ele estava.
Nas Rodovias, Postos, Bancos, Mercados, ali ele estava.
Estava em todo lugar e pertencia a todos. Não que eles quisessem que ele estivesse ali, mas era como se não houvesse defesa suficiente para combater o dito cujo.
Máscaras por todo canto, diferentes das que costumavam carregar os Senhores do Colarinho Branco (que estão agora revestidos duplamente de máscaras!): Físicas, penosas e de certo modo malquistas.
Não havia muita solução senão alertar e se proteger. O primeiro as pessoas faziam de monte: Na Selva de Árvores, de Pedras e demais Lugares. Abriam a boca para falar abertamente ao mundo que era o fim dos tempos. A segunda era menos vista, porque para muitos precaução é sinal de lassidão, coisa que o ser, dono de si, não pode demonstrar.
Alguns diziam que estavam todos no mesmo barco. A grande verdade: Não estavam.
Alguns estavam de Bote. Outros de Iate. Multidões se seguravam em uma porta que boiava, como Rose e Jack no Longa “Titanic”. Minorias bebiam Champagne e comiam Caviar dentro do PRÓPRIO Cruzeiro Titanic.
Para alguns o grande desejo era de um amanhã feliz, para outros somente o amanhã já estaria de bom tamanho.
Resumindo: O mundo estava uma Pandemia…
…como sempre.
(Lucas Soares)
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A vida segue no home office
Um pássaro canta e voa. Uma borboleta paira no ar e pousa sobre a folha verde vibrante. Ela observa tudo em silêncio. Faz tempo que não observava ao seu redor. O silêncio a incomoda. Mas, não é qualquer silêncio. Não é qualquer incômodo. Resolve ligar a televisão. As notícias causam angústia, muda de canal. As cenas do cotidiano, que não fazem mais parte da sua rotina diária, a magoam. Uma mágoa contida. Porque sempre foi assim na sua vida. Conter os sentimentos demonstra força. Cresceu acreditando e praticando.
Já são oito horas. Hora do home office. Um pseudo-alento para esses tempos. Tempos estranhos. Trabalhar dignifica o homem, mas a mulher também. Máxima que ouve desde pequena, nunca questionou. Antes de começar, suspira e imagina a sua vida de outrora. Vida agora abalada. Sozinha com seus cães e gatos, sente falta do antes. Sente falta do outro silêncio. Do silêncio que gostava de usar como refúgio. Refúgio que, talvez, não existe mais.
A vida segue num misto de observação de um cotidiano que não é mais o mesmo, porém, ainda insiste em querer se manter igual. Segue num misto de passividade, incompreensão e loucura. Sua vida segue num redemoinho de notícias e opiniões insanas. A vida segue no home office.
(Juliene Leite)
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Deus acima de todos debaixo
Ó meu pai eterno, COF COF COF agora que consegui me aposentar me aparece essa tosse, essa febre. ARGHI Deus é fiel! No postinho não tinha mais remédio, comprei na farmácia só o da febre, ai… OSS OSS mês que vem compro o xarope da tosse AIAIAIAI… Oh meu Jesus salvador, trabalhei mais de 40 anos, COF COF QSOSS mas nem sempre me assinaram a carteira, agora que parei, as doença vem junto?! Será que foi por causa OSS OSS OSS que diminuí o dízimo? Tende piedade, meu Jesus, nunca mais, foi por necessidade, meu neto ganha pouco, COF COF COF OSS ele é frentista AIAIAI e o
movimento diminuiu, meu pai eterno, tão falando em demiti ele, meu Deus dos aflitos,
ai que dor de cabeça…
COF COF COF COF COF USS Culpa desses comunista que não quer trabalhar.
UIUI Essa gente não tem fé!
AIAIAIAI Não viram que o presidente disse
COF COF COF é só uma gripezinha?
AAH AHAH O Brasil vai falir… AI USS
essa febre
tá
me ti
rando aaa
ar
ai não OOOS
consi…
(Marta Cocco)
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Meus companheiros de bunker
A pandemia tomava conta do mundo. Infelizmente, alguns países sofreram mais que outros, muitos líderes globais minimizaram no início e, logo depois, tiveram que voltar atrás. Mas para Marieta, o pior era ver de perto o preconceito com os idosos. Como se eles tivessem prazo de validade ou que suas vidas importassem menos, uma vez que naturalmente, já teriam menos tempo de vida decretado. Pensou naqueles jovens que pouco valorizam a vida se embriagando, drogando, dirigindo como loucos, dando festas em pleno período de isolamento, faltando com o respeito à vida daqueles que estavam trabalhando nos hospitais, na segurança pública, nos mercados e farmácias, nos deliveries. Eles teriam mais prioridades que os idosos se precisassem de um leito de UTI.
Pensou nos políticos corruptos que tanto já desviaram da Saúde, pensando exclusivamente em seus bolsos. Sua vida valia menos que a deles? Lógico que não.
E os empresários gananciosos, querendo lucrar cada vez mais, aumentando os preços dos produtos ou demitindo seus funcionários no meio da crise. E aqueles que faziam manifestações, colocando em risco a vida de muitos. Um dia a mais que os idosos vivessem com valores de outrora seria muito mais produtivo do que uma semana desses sanguessugas.
Ela já tinha insônia desde nova, com a idade, era natural diminuir mais horas de sono e daí sobrava mais tempo para pensar. Ficar consigo mesma, uma vez que filhos e netos moravam longe e tinham suas próprias vidas.
Lia as notícias por toda a Europa, idosos sem poder conviver com a família, sair às ruas, abandonados em asilos, faltava a dignidade para as últimas horas. Um certo asno falara na TV que ” vão morrer alguns idosos, mas eles já iam morrer mesmo, de corona ou de outra coisa”. Sentia-se totalmente desrespeitada. Começou a maquinar em sua cachola uma vingança, um plano para mostrar ao mundo que mesmo quem tem pouco tempo de vida pode ainda fazer muita diferença. E, sabendo usar a internet e as redes sociais, foi secretamente, em silêncio, conversando com todos aqueles entre 65 e 80 anos, que também tinham acesso à rede, quem não tinha foi contatando por telefone ou carta, foi formando uma ampla rede de contatos para quem contou o plano.
Com o pico da doença chegando ao ápice, muitos morreram, a maioria idosos, porém, o que aconteceu depois foi surpreendente. Testamentos registrados em cartórios com laudos médicos de comprovação de sanidade e cartas para os jornais e familiares diziam:
Deixo todos os meus bens móveis para médicos, engenheiros, biólogos e pesquisadores de universidades e todos aqueles que de alguma maneira ajudarão a Ciência e a Educação a criar a cura, a consciência e os mecanismos que impeçam ou minimizem uma nova pandemia.
Deixo meus milhões para famílias de enfermeiros, técnicos e profissionais de higienização de hospitais em agradecimentos pelo trabalho e pela doação da vida para cuidar de quem estava necessitado.
Deixo todas as minhas ações para músicos, poetas, atores e bailarinos que se apresentaram gratuitamente para aqueles que estavam confinados, respeitando o isolamento, alegrando assim, seus dias.
Deixo o meu mais caloroso abraço aos meus companheiros de Bunker nesta quarentena.
E um novo mundo surgiria, de um último ato, daqueles que foram mais desprezados nesta sociedade. Em poucas horas, um bando de idosos conseguiu mudar a história da humanidade.
(Vanessa Ratton)
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Luana
Luana era uma mulher gregária. Em sua casa sempre havia encontros, festas, grandes reuniões. Sempre em sua casa. Sempre à noite. Luana, a enluarada, não gostava de sair. As pessoas do seu convívio – muitas – é que vinham ter com ela.
Sua casa era grande e diversas vezes lá se reuniam mais de cem pessoas. Dava-se bem com todas, mas não se dava com ninguém em específico. Não tinha nem nunca tivera um relacionamento amoroso.
Fazia aniversário no dia primeiro de abril. Naquele ano, 2020, a festa seria grande. Como levava vida noturna, durante o dia Luana dormia. Seu aniversário – ou qualquer outro dia de festejo – era exceção, já que cabia a ela preparar tudo. Ainda assim, mantinha-se no escuro: sua casa não tinha janelas. Este era seu jeito de evitar a luz solar. O sótão, que ela visitava apenas à noite, possuía uma imensa claraboia, e era por ali que ela observava a lua.
As comidas de suas festas eram feitas por ela. Pratos fantásticos, assim como os drinks que preparava. Os ingredientes daquele festejo especial, como sempre ocorria, haviam sido deixados em sua porta sem que houvesse contato com o entregador.
Dizia-se, à época de seu aniversário, que se alastrava pelo mundo uma doença causada por um vírus. Falava-se que as pessoas deviam evitar se aproximar umas das outras por conta do fácil contágio. Luana, porém, tanto quanto seus convivas, não se importava com lendas.
Assim que chegaram os ingredientes, Luana iniciou o preparo dos acepipes. Os drinks ela fazia na hora. Era uma bartender tão veloz que ninguém ficava com o copo vazio. Além dos tira-gostos, haveria ceia à meia-noite, hora exata de seu nascimento.
Em sua grande cozinha, Luana preparava tudo com uma destreza inacreditável. Era organizada com as coisas e com o tempo, o que fazia com que tudo desse certo. A festa começaria ao nascer da lua – seus convidados observavam o céu antes de tocar a campainha – e terminaria quando o sol ameaçasse raiar.
A festa prometia ser grande, e foi. Vieram as amizades todas para a comemoração dos seus quarenta anos: cento e vinte convidados. Era este o número máximo de pessoas que ela se permitia conhecer. Gostava de números, de exatidões e de regras, apesar de suas festas desregradas. As pessoas de seu círculo não podiam levar companhias a sua casa. Como aqui já se disse, Luana só se dava com quem conhecia. Estranhos não eram admitidos.
A festa foi linda. Teve comida boa, bebida boa, um belo bolo também preparado por Luana, houve música boa e muita dança. Porém, nada de beijos e namoros. Os convidados, como ela, não tinham relacionamentos amorosos. Isto era tabu para Luana, que exigia dos amigos a solteirice.
Feita a ameaça do sol, Luana decretou que a festa tinha terminado. Antes que o dia nascesse, foram todos embora. Não se podia ter luz solar no abrir da porta para que partissem. E assim se deu.
Deitada em seu catre, Luana ainda guardava impressões da festa. A casa era grande, mas sua cela sem janelas era pequena. Desperta, no convento de enclausuradas em que vivia com outras cento e vinte freiras, ela se despediu do sonho. E começou a rezar para que Deus desse fim ao tão agressivo vírus. O convento tinha uma imensa claraboia no sótão. Por ali Luana, agora com quarenta anos, via a lua.
(Mô Ribeiro)
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Rodolfo e Lídia
Rodolfo e Lídia voltaram à vida normal, como ela havia falado para a amiga Claudinha. A passagem comprada e marcada selava que teriam um ano próspero e merecidas férias. Traçavam no mapa cada lugar que iriam ver no trajeto da viagem, tudo minuciosamente planejado. Além da viagem, os projetos de trabalho que tinham, cada qual o seu. Inspiravam anseios juntos. Afinal de contas, era merecidíssimo, depois de tudo que haviam passado, dizia ela. Como havia dito para a amiga Claudinha, estavam voltando à vida normal depois da última internação de Rodolfo e já em casa, se recuperando de duas cirurgias que ele havia feito. Entre uma e outra submeteu-se a várias colocações de sonda, uma infecção “braba” por conta delas e outras complicações que vieram por conta da situação. Enfim, os médicos deram alta aos dois. Até porque, como diziam, Lídia também estivera internada, em companhia de Rodolfo. Haviam criado uma rotina.
Na segunda semana da volta dele ao trabalho, depois da licença médica, foi anunciado nos jornais da televisão e em redes sociais, o isolamento social por causa do coranavírus. Em isolamento, Lídia e Rodolfo, vez e outra se viam internados, mas dessa vez havia junto a eles o seu filho pequeno cheio de energia para com a vida. Uma internação que não tinha em vista um receituário da alta médica. Desta vez o mal não ameaçava só o físico-emocional de Rodolfo, mas sim de todo tipo de sistema social da terra. Pensava Lídia, em meio a rotina que haviam criado.
(Neide Silva)