Pandeprosa: Brasil, quinze mil mortos
“Pandeprosa: Brasil, quinze mil mortos” é mais uma curadoria realizada por Divanize Carbonieri, com produções literárias a respeito da pandemia de coronavírus e suas consequências. Nesta semana, em que o Brasil chega aos quinze mil mortos notificados, os textos selecionados são assinados, respectivamente, por Marcio Markendorf e Izabela Drozdowska-Broering, Juliana Berlim, Maria Amélia Elói, Rafael F. Carvalho, Felipe Holloway, Michel Yakini, Gilmar de Souza Pinto, Carlos Machado, Adriano B. Espíndola Santos, Jander Ruela Pereira, Agnaldo Rodrigues da Silva, Lígia Jorge e Marcio Markendorf.
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(Marcio Markendorf e Izabela Drozdowska-Broering)
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Quarentenados
Como crocodilos de um filme B, sairemos da toca prontos para abocanhar o que vier pela frente. De pé estaremos sonolentos, despertos sem aviso prévio do sono programático. Mas nada mais será como dantes no país-quartel d’Abrantes. A realidade virou uma live infinita marinada em cerveja.
(Juliana Berlim)
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Desencanto
Para a decoração de seu baile de debutante, Janaína escolheu rosas, gérberas e astromélias coloridas. No dia programado para o Danúbio Azul, no entanto, enxugou as lágrimas, vestiu uma máscara preta e levou uma coroa de cravos, margaridas e crisântemos brancos para se despedir do par da primeira valsa.
(Maria Amélia Elói)
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Cento e setenta e sete passos para eu chegar até o décimo andar, desde o térreo. Meu mundo passou a ser, além de minha casa, as escadas do meu prédio. Subir e descer degraus para exercitar minhas pernas, que doem imediatamente quando começo a galgar os pavimentos. Frequento um corredor vertical, uma chaminé com andares, me preparando para o (longínquo) dia em que serei carne novamente.
(Rafael F. Carvalho)
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Exumação
Do alto da colina, em companhia de uma pequena multidão, viu a vala sendo reaberta pela escavadeira, cujo operador tentava imprimir o máximo de delicadeza ao movimento da garra metálica de 300 quilos, retirando uma camada rasa de terra por vez, como quem tenta secar um lago a colheradas. Mesmo com a imunização pela vacina, houve um arrepio coletivo, como se a onda de aniquilamento que se abatera sobre aqueles corpos pudesse quebrar uma segunda vez em cima dos que tinham ficado; mas era preciso saber, distinguir suspeitas de confirmações, aprimorar o banco de dados. O lençol de girassóis com que a avó fora enterrada foi o segundo a aparecer. Apertou a mão do avô ao mesmo tempo em que um grupo de corvos atiçados pelo cheiro sobrevoou o local. Baixinho, sob o grasnado das aves, ouviu-o dizer, como se se amparasse na razão por que faziam aquilo, ou ratificasse a premissa sob a qual viveriam dali em diante:
— Nunca mais.
(Felipe Holloway)
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Meia noite, terminei de escrever um texto pra uma revista e fui preparar leite de coco. Pensei em furar a quarentena, dar uma caminhada, quebrar o tédio. Na hora de abrir a segunda casca, a cuba da pia desabou. Senti uma pancada no pé e o chão lavado de sangue. E lá fui eu encarar o Hospital em pleno auge de COVID.
Fui do jeito que tava: bermuda, chinelo, contra-egum, três pulinhos, o pé enrolado numa toalha e um medo da preula. Fui atendido rapidamente. Nenhuma fratura, dois pontinhos pra estancar a cachoeira e dicas de cuidados. Ufa…
No curativo o assunto pandemia foi inevitável. O enfermeiro chegou a citar milhões de perdas. O trauma vai ser grande, disse a médica. O paciente anterior, meio borracho, resmungou que o Corona é conspiração. A médica perguntou se eu queria um atestado, já que agora não daria pra eu calçar as botas. Mas que botas? Respirei fundo, agradeci e saí vazado nos três pulinhos.
Fui pra casa passando álcool gel na mão, no braço, na cara, na roupa, querendo beber. Em casa: água com sabão, banho e ainda fiquei me sentindo meio sujo. O tédio virou meu melhor tratamento. Deixa estar…. nem queria sair mesmo.
(Michel Yakini)
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Com toda que agoura
Conto com vocês… Um, dois ou três, eis meu leitorado – digo que são meus teus ouros, pois com paz se faz a aboli(na)ção do “ter, tinha”…
Ali babava – essa uva de vida à moda dos 40s (duplamente vintage), com finado Blanc estendido no chão, qual o Xerife Migliaccio, me roubava mis noites a contar e contar para amanhecer com a garganta falaz. Há quem ainda – veja, Minnie, conto pra Si se mostrar – não nos convide: vim te…
Antepátio nos aglomera – nem todos ostentam fardões de comprimentos comensuráveis mas há braços vistos naquelas sorvendo e servindo smiles buscando estreitar os laços entre nós…
– Já as más caras são indisfarçáveis, nem preciso teorizar sobre possíveis traços fenotípicos ou trejeitos que denunciariam uma pessoa antipática…
Ela, por exemplo, tece loas ao corpo meio vazio – e só lamento…
(Gilmar de Souza Pinto)
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Comunhão
O teto chegou a tremer. Parece que o menino se jogou no chão da sala, sem dó, deixando-se cair com a cara voltada para baixo. O nariz deve ter se quebrado, não é possível. Seu pai corre para acudi-lo (ou quem sabe brigar com ele por estar jogando amarelinha), cuidado com a televisão, seu guri sem-noção, parece que assim esbraveja. O grito se espalhou tanto, que desceu a parede e entrou pela janela semiaberta escorrendo para perto de onde eu me sento com o livro aberto na mesma página há horas, dias, semanas. O barulho veio acompanhado pelo lamento do galo da vizinha da rua de trás. Até o mês passado, ele cantava sempre no mesmo horário, mas de uns dias para cá, perdeu a noção, já rouco de tanto olhar para o céu, como o motor insuportável dessa máquina de lavar do apartamento da frente que bate a qualquer momento como se nada estivesse acontecendo. De onde estou, vejo a silhueta de uma mulher passando pela veneziana em direção à área de serviço para segurar a máquina que começa a trepidar. Mas não tenho certeza se o tropeço é do peso das roupas mergulhadas na água quente ou dos bate-estacas reverberando na construção ao lado. A Dona Laura, do apartamento de baixo, também parece estar irritada, pois bate a porta com toda a força, a ponto de interromper a canção entoada por um morador de dentro de algum banheiro por perto.
Se ao menos eu pudesse apagar a luz.
(Carlos Machado)
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Nota de descarrego
Os acontecimentos vão tomando uma proporção, que, deus do céu, não se consegue mais discernir, colocar as coisas nos seus devidos lugares. A palavra que teima, tão frequente e pomposa na boca de meu pai: discernimento, povoa o meu complexo imaginário. Será que ele, infalível nas suas teorias, teria condições de discernir, agora? Pego-me pensando nas nossas inseguranças, enquanto arrumo a casa, tomo um chá, nesse dia frio e pandêmico; seria um bom motivo para desfazer as armadilhas… Umas horas antes de sentar para escrever esse texto e tentar liberar alguma carga falei com a Jordana, que me acompanha desde a época da faculdade. Expus a minha dificuldade de dormir, de relaxar, para recompor as energias; “todo dia o desgraçado faz uma cagada e cava um fosso nesse país”. Ela emendou, quase sem tomar fôlego, para não escapar a ideia: “Sandra, me escuta: tem de desligar, para a imunidade não baixar!”. Achei tão óbvia quanto ingênua, parecia minha mãezinha relatando diretrizes amplamente conhecidas por mim e por meio mundo de gente da família. As duas se empenham em arranjar explicações, encontrar uma saída digna; ou seja, querem me resgatar. São anjos que declamam poesias divinas no afã de aliviar o caminho. Será que ele, meu pai, homem circunspecto, teria capacidade de discernir e tomar as rédeas e reparar esses estragos? Não, muito provavelmente. Era só aquele jeitão morno e rijo de se mostrar impermeável ao tempo, às adversidades. Nada de couro grosso, como vociferava aos quatro cantos. Até suspeito que no banheiro, local onde estaria protegido de julgamentos, no qual passava longas horas, devia mesmo chorar de se arrebentar. Entrava quase sempre afobado e saía leve, feito uma pluma; sabíamos inclusive que essa seria a brecha para pedir um trocado para o fliperama, para alugar a fita na esquina. O velho, no fundo, tinha um bom coração. Era bobo, sim, por pensar que homem não podia isso e aquilo; que tinha de se manter durão etc. e tal. Nunca o vi chorar. Morreu cedo, ataque cardíaco fulminante; não nos deu a chance da despedida. Porque represou o mundo. Porque imaginou ser insuperável. Porque era um poço de preconceitos e dogmas. Porque, por conta própria, resolveu preterir a emoção, essa que hoje me sustenta aos trancos e barrancos; que, bem ou mal, me ajuda a perceber. A molécula do amor, dizem que a ocitocina, lateja aqui dentro, quando penso em Alcides, Luzia e Jordana. Claro, o amor deve suplantar o peso de viver sitiado por medos e incertezas.
(Adriano B. Espíndola Santos)
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Pandemia
Se você me perguntasse quem é Deus, você, que nem acredita nele?
Eu diria que além disso Ele existe e, sem Ele, que sentido a vida teria?
Com sentimento de tristeza ou alegria, diria siga em frente, mantenha a distância, evite aglomeração, use uma máscara e passe álcool gel.
E se tivesse a oportunidade de ficar frente a frente com Ele como você O indagaria?
E se pudesse conversar com Ele você ousaria perguntar por que sofremos tanto com essa pandemia?
Se quando viemos pra cá, qual dívida é essa, que temos que morrer pra pagar ante tanto mistério, ante um inimigo invisível de nome covid-19 ou corona vírus?
Paira a dúvida cruel, veio de onde?
De Huan na China, do inferno, de um laboratório ou foi enviado do céu para criar anjinhos de arpa entre as nuvens?
Morremos de guerras, terremotos, de câncer, morremos com sede de viver.
Uns morrem na fila da UTI, outros morrem por falta de ventilação pulmonar, enquanto o indigente morre atropelado na contramão da história.
Enquanto existem pessoas felizes, outras sofrem tanto, famílias infelizes com a perda de entes queridos.
Nascidas do mesmo jeito, mamaram no mesmo peito e caíram no mesmo pranto.
Quem foi que temperou as lágrimas e acabou salgando a dor, desaguando-as em qualquer canto?
Deus é gênero de primeira necessidade pra qualquer idade, vamos nos apegar a Ele, porque não existe nem mesmo um ministro da saúde que sobreviva ao protocolo da cloroquina.
Desconfie no destino confiando cada vez mais em você.
Gaste mais tempo criando do que dormindo e sonhando, vivendo intensamente do que aguardando por dias melhores, embora quem quase morreu esteja vivo, quem quase está vivo pode morrer a qualquer momento.
Depois que essa pandemia passar, devo pensar que tudo passa, estaremos livres de tantas coisas, sem esquecer da dor da separação, de lembrar mais no próximo, nos solidarizar com o vizinho e dar aquele abraço e sentir que sozinho não sou ninguém, e o que seria de mim se não fosse você?
(Jander Ruela Pereira)
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A insustentável fragilidade humana
O agnóstico decidiu vasculhar mistérios do mundo. Entrou na internet e encontrou fatos intrigantes. Um deles relatava ruídos misteriosos, semelhantes ao som de trombetas. O acontecimento, no mínimo estranho, acontecera em partes distintas do mundo. Entre um site e outro, o internauta deparou-se com certa notícia que tomava corpo na imprensa. O Homem Santo, em atitude insólita, batera na mão de uma fiel. Curioso, o rapaz aprofundou a pesquisa. Outra manchete mostrava o homem esquivando-se de tocar na mão das pessoas. Queria ele evitar contaminação? Haveria alguma peste à solta? Algo esperava o momento certo para testar a fragilidade humana. O noticiário do dia alertava que um filho de Drácula tinha sido capturado, morto e devorado. A maldição do vampiro, sem dúvida, contaminara o degustador. Após longo respiro, o último de sua existência, um bafo quente libertou a essência fatal. O vento encarregou-se de espalhá-lo de norte a sul, leste a oeste, do ocidente ao oriente. A raça dos sapiens estava condenada.
Era um inimigo poderoso. Invisível. Bastava ingeri-lo para se tornar um hospedeiro. A ciência parecia impotente. Impôs-se um cerco à humanidade. Houve fome. Os cadáveres, sem que recebessem os dignos votos de despedida, foram colocados em covas coletivas. Apesar da peculiar incredulidade, aquele rapaz percebia que o fio de Ariadne ligava aqueles eventos. Algo estranho acontecia. No íntimo, ele sentia que o mundo jamais voltaria a ser como antes. O som das trombetas nunca mais foi ouvido. O céu continuava azul, como sempre fora. O Homem Santo permaneceu a rezar e a abençoar os fiéis. O filho de Drácula morreu, mas deixou sua semente disseminada. Travou-se vigorosa busca pelo Antídoto da cura. O agnóstico, na certeza de que a carne é fraca, não mudou a sua concepção de mundo, muito menos a sua relação com Deus e os homens.
(Agnaldo Rodrigues da Silva)
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Aleluias
O quebra-mar não venceu durante a noite e as águas destruíram os canteiros com escassas espécies de arbustos floridos resistentes à maresia. Acima do chão no nível da muralha holandesa há um punhado de florzinhas lilases espocando em feixes a partir de uma haste com folhas oblongas oriunda de um caule salpicado de pintas brancas da última demão de tinta. Da janela térrea de um prédio decadente, entristecido com o arrulho constante do mar, repasso a cena da manhã de ontem: a falência do quebra-mar a erosão da faixa contínua e paralela ao longo da orla e, ali há décadas, um caule grosso matriz de flores entre o azul e o roxo.
O avanço das águas cessou com o relaxamento do lockdown, que teve a maior extensão entre todos, ao longo do que ficou conhecido como o Triênio da Peste. Aos poucos a prefeitura repôs a terra sem replantar os arbustos que floresciam, substituindo-os por cactus, agaves e coroas-de-cristo. Os atletas e os michês voltaram a circular cada um no seu horário, às vezes a mesma pessoa em diferentes horários, no começo com máscaras e frascos de gel antiséptico, kit básico esquecido até a próxima onda de contaminação. Eu continuava na janela enviesada para a orla com o Atlântico logo depois, de frente às flores, ora às pencas ora desaparecidas por duas ou três semanas, nascidas no vinco de um muro chapiscado na esquina de uma avenida em uma orla de um mar revoltando-se de quando em quando e cada vez mais. O mês foi estendido por um tempo como as filas de mortos que acompanhei obsessivamente pelas redes sociais, especialmente grupos de whatsapp com cidadãos fiéis às fakenews e com fatos tão chocantes que ninguém dava bola.
Adoeci no meio do primeiro surto com sintomas leves que não foram levados em consideração a não ser quando o quadro de asma crônica de mamãe agudizou, testamos positivo e doze dias depois ela me deixou com este prédio e uma pensão vitalícia suficiente para doar 50 cestas básicas tamanho M todos os meses. Evitei sair de casa com relativo sucesso durante os períodos de distanciamento social na dúvida sobre a imunização de rebanho. Recebia o suficiente dos entregadores, a cada semana mais esquálidos, muitos vindos da Boca do Rio a pé. Foi comum a perda de entregas e as respostas evasivas das empresas de aplicativos, pois acomunaram-se de tal forma que não valia à pena reclamar.
Posicionei minha mesa sob a janela para a frente do muro da esquina do ciclo das flores lilases. O mar em subidas irascíveis que mesmo a muralhada aumentada não evitava a perda da faixa de areia da praia mais conhecida e visitada da região. Blocos de concreto pintados à Romero com tintas incandescentes pela iluminação de LED do Projeto Nova Orla foram inaugurados ali antes do ciclo falido de micaretas que suspendeu novamente o carnaval levando à falência empresários da classe média e empreendedores tão sem dentes que tinham como último ato lançarem-se da cidade alta. Vislumbrei a inovação na paisagem uma noite após um imenso temporal que deslizou encostas e expôs corpos encobertos pela demanda de covas, os serviços mortuários são administrados nacionalmente por uma holding vencedora do maior leilão desde o pré-sal. A enxurrada argilosa de memórias suspendeu-se agora, mas ocorreu em diversos pontos da cidade em profusão que números oficiais jamais registraram. Voltando desta breve ida até a antiga praia, acelerei o passo, mas fui barrado por um putinho macilento saído de trás de uma sete-copas imensa e, de seu encolhimento para proteger-se de um chuvisco progressivo, ofereceu-me seus préstimos. Atravessei a rua com pés lassos, bati o portão do corredor de chão de cerâmica e avencas mortas, o celular vibrava no bolso e evitei tocá-lo. Deixei o chinelo de sair, as roupas para lavar e a máscara. Após o banho, paguei-lhe com uma nota mínima entre as que ainda valiam algo. Besuntei a mão de álcoolgel e acessei a produção de memes por um navegador criptografado, havia um certo medo de ser associado ao terrorismo promulgado antes do segundo impeachment e, eventualmente, ser submetido às perseguições das hordas de todos os espectros políticos, nem sei mais dizer se houve uma proposta melhor que esta ou se foi algo como aleluias se debatendo ao redor das lâmpadas no começo da quaresma há três anos.
(Lígia Jorge)
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(Marcio Markendorf)