Pandeprosa: “não consigo respirar”
Pandeprosa: “não consigo respirar” é uma curadoria realizada por Divanize Carbonieri com textos a respeito da pandemia de corona vírus e suas consequências. Nesta semana, a edição é dedicada a João Pedro Mattos Pinto e George Floyd, o primeiro, um adolescente de quatorze anos, morto com um tiro pelas costas numa ação policial no Rio de Janeiro, o segundo um homem adulto, imobilizado e sufocado até a morte por um policial americano. Ambos eram negros, assim como é negra a parcela maior da população que está morrendo em decorrência da covid-19, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Dessa forma, a frase emblemática de Floyd, na verdade um chamado à razoabilidade de um sistema que o queria morto, “não consigo respirar”, serve como paradigma para a asfixia causada pela doença, mas grandemente agravada, nesses dois países, pela desigualdade social, pobreza, racismo e opressão. Então, é sob essa sentença que iniciamos a publicação deste domingo, em respeito a todas as vítimas dessa tragédia da injustiça.
As produções selecionadas para esta edição são assinadas, respectivamente, por Ana Paula Campos, Carlos Antonholi, Vanessa Franco, Vera Lúcia de Oliveira, Sabrina Dalbelo, Cristiane Navarrete Tolomei, Mário Baggio, Marília Kubota, Melissa Suárez, Manuella Bezerra de Melo e Patrícia Alves.
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Pensando no pós-pandemia na sala de estar
Esta não foi uma semana fácil. Vejo grande parte da minha timeline ser tomada pela angústia da classe média/elite que se queixa do tédio, da falta de criatividade, de não conseguir ler e escrever em tempos de isolamento social. Boa parte dessas pessoas está debatendo e refletindo a despeito de sairmos melhores ou piores dessa pandemia. E enquanto o papo rola na sala de estar, no terreiro o povo passa fome. São pessoas de periferia que se aglomeram em filas quilométricas em busca de um auxílio emergencial mínimo, que demora semanas para ser liberado.
Um homem negro escravizado corre pela rua sem roupa, sem dignidade, sem liberdade. “Não liguem! É só mais um bêbado.” E a escravidão segue sendo justificada. Pessoas brancas trancaram suas portas, seus olhos e seus ouvidos. “O problema não é meu.”
Um jovem negro de 14 anos que brincava de sonhar é morto pela polícia. Mais uma bala perdida a encontrar um corpo negro. Um sonho a menos e uma família a mais destruída pelo racismo.
Nos dois casos não vai haver investigação. Não vai haver punição. João Pedro, assim como Ágatha, será esquecido. Comoção no Brasil dura pouco. É só o tempo do post rolar pela sua timeline. A cada 23 minutos uma mãe perde um/uma filho/a negro/a neste país. Em um país majoritariamente cristão e que prega tanto amor (com exceção de quem apoia a tortura), fico pensando que esse discurso altruísta tem cor.
Portas fechadas! Quem está na sala de estar finge não ouvir os gritos dos terreiros, dos guetos, da favela, dos quilombos… A TV está ligada. Glória Maria desabafa sua dor.
“Mas eu não sou racista. Olha só, eu uso trança nagô. Estou na moda.”
A branquitude gosta de negrxs, mas apenas para consumir nossa cultura. A comoção pelo povo negro até vem, mas apenas quando a narrativa está nos livros. Gostam da música, mas não querem pagar pelo cover artístico. “Não é problema meu se músicos e demais artistas estão privados de ganhar por sua arte neste momento.”
“R$ 130,00 por uma faxina? Muito caro! Estamos vivendo um momento de crise. Vou reduzir sua diária pela metade.” Sim, porque empregadas domésticas não merecem mais que isso para lavar um banheiro. Ana que se vire!
Mas são apenas corpos negros. Amanhã essa mesma classe média/elite vai continuar twitando que está morrendo de tédio porque não consegue escrever, enquanto o povo preto segue morrendo apenas por ser preto.
É a necropolítica: policiais – negros em sua maioria – matam seu próprio povo movidos por uma falsa ilusão de poder. Nossa raça segue sendo exterminada e xs brancxs nem sequer precisam sujar as mãos para isso. Achile Mbembe me contou. Um homem negro.
É o genocídio do povo negro que segue seu curso de extermínio, cancelando nossos corpos, cultura e aniquilando nosso psicológico. Abdias Nascimento me contou. Um homem negro.
Mas a branquitude não ouviu. Ela não liga. Então veio Anitta e falou de política. Veio Felipe Neto e falou sobre fascismo e privilégios de raça, classe e gênero. Que bom! A partir do lugar de fala deles, trouxeram à tona questões urgentes. Mas eu pergunto: vocês ouviram?
Na sala de estar, a branquitude discute virtualmente como será o pós-pandemia, enquanto nós, povo preto, discutimos quando venceremos o processo de pós-escravidão. O povo negro periférico segue tentando sobreviver.
Se você votou em Bolsonaro, é cúmplice!
Se você silencia para o debate, é cúmplice!
A cada 23 minutos morre um jovem negro neste país e a culpa é sua!
(Ana Paula Campos)
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Recebeu alta após mais de um ano em coma e achou bacana o fashmob da moda em que todos usavam máscaras nas ruas…
(Carlos Antonholi)
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A outra margem
A pandemia chegou cedo e o relógio marca um segundo, dois e três de algo vago no tempo. E as manhãs de outrora têm volta? O silêncio silencia a pergunta e o ponteiro corre vagaroso por dentro. Mas a canção ficou pequena depois da partida do azul e o vírus consome a gente em pequenas horas. E o riso perdido a saudar o mar e o rio nos olhos das borboletas e o medo da montanha que temos medo de achar.
Mas ouço o barulho das folhas verdes no chão…
(Vanessa Franco)
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Um poste
Lidar com o silêncio é ligá-lo a um poste de luz. Ver se ele se acende de noite com seus insetos brancos, ver se o halo se desmancha debruado pelas folhas frescas, ver se os fiapos transpassam a porta de casa e se adentram raspando o assoalho escuro, ver se a noite é morna em sua poça clara, ver se a rua dorme em suas cômodas gordas, ver se os quintais se enfurnam nas vidraças que se fecham, ver se o sono é poça de lua pingada no pulmão das fronhas.
(Vera Lúcia de Oliveira)
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O lixão do abutre. O lixão da Rute
Na terra acinzentada onde o abutre se alimenta e depois defeca, onde o resto é despejado, a menina Rute brinca, corre pra todo lado. Lá, para onde algo que alguém não quis é transportado. Lá, no fedor, na lama, onde adubo é revirado, onde o homem pisa, cata e vende o que abutre não come.
Sabe o lixão, aquela reunião de lixo e de pessoa com fome?
Na pandemia não fecharam o lixão, porque gente, qualquer gente, pobre ou rica, sadia ou doente, faz lixo todo dia. Não importa se é idoso, grupo de risco, criança, ou minha tia Maria. Todo mundo faz lixo de papel higiênico todo dia.
“Cata, cata, cata. Cata lixo no lixão.”
Não, não fecharam o lixão na pandemia.
Não tem máscara que esconda o vírus no lixão. Não tem máscara que esconda a gente do lixão.
Na terra acinzentada de onde os catadores tiram o alimento, todo dia chega lixo e todo dia sai lamento.
Tem vírus de todo tipo no lixão, tem todo dia.
No lixão come abutre. No lixão brinca a Rute.
(Sabrina Dalbelo)
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Lava
Curvada me mantenho trancada. Sons da rua que irrompem o silêncio da solidão. Palavras que não serão compartilhadas enquanto presa da segurança. Sozinha carrego a dor, o medo e a revolta. Entre panelas e indignações, sofro na janela e vejo o mundo na mão dos odiosos. A resistência ocorre na janela entre os olhos assustados, ansiosos, solitários. A música ultrapassa a barreira do medo e do cansaço. De joelhos estendo meu braço para a luz, velha amiga entre os crentes. Levanto-me para resistir à morte física, mental, democrática… na janela entre olhos esperançosos. Sou lava queimando na multidão e no corpo do outro encontro força para romper o silêncio. Vozes do passado retomam seu lugar e na agitação do povo reencontro raízes perdidas na angústia. Nas ruas tomadas, o som ecoa liberdade e o sorriso é resistência. Corro para atear fogo nos corações. A chama da justiça traz acalento, harmonia, finalmente. Acordo com as notícias na televisão e curvada, a chama é apagada. O povo aguarda para o enfrentamento final e resistir é dor. Curvados na janela, aguardamos, não por um herói, mas por nós mesmos.
(Cristiane Navarrete Tolomei)
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A boca banguela
Espio pela fresta da porta: ninguém além do vento. Máscara no rosto, saio pra rua. Compra de primeira necessidade: pão e leite. Movimento quase nenhum nas imediações de onde moro, barulho de um carro ou dois, duas ou três pessoas caminhando com pressa e medo na cidade quase morta.
O semáforo para pedestres instalado na esquina me olha e ri como alucinado, luzindo a cor vermelha. Sempre foi assim: bastava eu me aproximar para cruzar a rua e ele, sorrateiro, perverso, passava do verde para o vermelho. Espere aí, otário, agora é a passagem dos automóveis. Nem uma vez brilhava o verde para mim quando eu chegava à esquina, nem uma! Só o vermelho, que parecia uma gargalhada de gengivas sem dentes, e que insistia em me vigiar. Quietinho, não mandei atravessar ainda.
Olho para os dois lados, nenhum carro. Tiro um dos sapatos e acerto bem no meio da bocarra vermelha no outro lado da calçada, que muda de cor imediatamente. Atravesso. Passo pela boca agora verde com um sorriso zombeteiro. Eu também sei jogar o jogo, imbecil, digo baixinho. A boca retruca dizendo que vai me denunciar ao prefeito e ao subprefeito. Mostro para ela o dedo médio e entro na padaria mancando, só um pé com sapato.
Na volta, de novo a bocarra vermelha me impede de atravessar. Não espero: ainda me sobra um sapato e acerto mais uma vez as gengivas cor de sangue. Verde. Passo, de cabeça erguida e ar vitorioso, ao lado da boca banguela e entro em casa só de meias. Não me importam os sapatos. Que fiquem na rua e se encham de vírus. Na minha casa aqueles bichos não entram. O semáforo para pedestres? Ah, que enlouqueça ou morra de frio naquela esquina deserta mas repleta de medo. Sem gente, sem vida, sem nada na cidade quase morta.
(Mário Baggio)
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Ficar em casa
Durante anos fiquei incomodada com o fato de não sair de casa. Ao redor diziam: “não fique o tempo todo enfurnada”, “saia pra respirar”, “não fique só lendo”, “pratique exercícios ao ar livre”. Instrospectivos se acostumam a ouvir esta ladainha e mais: “você fala demais”, “não ouvi sua voz hoje”, “acho que estou surdo”.
Tornei-me especialista em ficar em casa. Fui criança quieta: adorava ler. Revistas em quadrinhos, crônicas, poemas, almanaque Biotônico Fontoura. Em casa não havia livros. Nem Bíblia, nem Doutrina de Buda. Não lembro se era mais caseira do que outras crianças. Sei que jamais aprendi gramática na escola. Graças à leitura, “entendia” as regras da língua.
Aos 15 anos, comecei a ficar mais em casa do que meus colegas. Abandonei o ensino médio. Fugi de uma apresentação oral compulsória nas aulas de Língua Portuguesa. Nunca abria a boca nas aulas. Nos três anos em que fiquei em casa, fiz formação de leitura autodidata. Emprestava livros de bibliotecas para ler o que gostava.
Li literatura brasileira, latinoamericana, norteamericana, russa, francesa e um pouco de japonesa — raros eram os autores traduzidos até os anos 90. Comecei a escrever um diário e descobri que podia escrever poemas. A leitura e a escrita atenuavam a solidão do luto da adolescência. Aos 18, renasci e completei o ensino médio. Fiz vestibular e fui aprovada em cursos de Letras e Jornalismo.
Já como jornalista, eu pedia para trabalhar em casa. Só pude concretizar este desejo em 2008, quando abandonei o jornalismo para me dedicar à literatura. Desde então, trabalho indoor. Aprendi a cumprir horário e compromissos, aproveitar oportunidades e não ficar isolada demais. Embora adore a atividade a sós, o isolamento compulsório ou voluntário é diferente. Não há opção de ir ao bar da esquina tomar café para ver gente ou papear furado ou caminhar ao ar livre para observar bem-te-vis e capivaras.
Com a popularização das redes sociais, comentar notícias se tornou o entretenimento favorito de parte da humanidade. Com a ameaça do coronavírus, os ansiosos buscam atualizar-se e comentar na internet.
Como a maior parte das pessoas que podem, estou em auto-isolamento voluntário. Tenho experiência de vários anos de confinamento domiciliar. Nunca pensei que uma tendência introspectiva um dia se tornasse universal.
(Marília Kubota)
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A farinha, o cimento, a república e a corda
Não tem farinha de trigo e seu mundo caiu. Mãe idosa na casa dela, você sozinha na sua. E agora britadeira escandalosa que suga o silêncio e serenidade. O rapaz do carro dos ovos continua passando. E a república que está realmente garantida é a do seu filho. O que você faria sozinha se começasse a tossir e arfar?… O tio da mandioca continua passando. A vizinha resolveu fazer reforma no meio da pandemia. Você se lembra que ficou chateada porque a loja de material esportivo já estava fechada um dia antes da quarentena? Se o ar faltasse à sua mãe, iria lá, óbvio. Amigas, amigos todos igualmente guardadinhos, isso é bom. Mas faz muito frio. E é a parede de divisória dos dois terrenos que a vizinha mandou quebrar e aumentar. Você, que tinha achado boa ideia comprar corda para fazer exercícios em casa. Tudo bem não ter ricota, mas farinha? Acho que você ligava para o teleatendimento do plano de saúde, né… E ainda, coagida a dar aulas online. Na sombra da enorme fileira de tijolos vizinhos que se erguem como impasse a raios solares. A mulher e filha catadoras de recicláveis continuam passando. Não chove há vários dias. Era mesmo boa ideia aproveitar o confinamento para ter uma rotina de exercícios, talvez finalmente emagrecer. Não ter farinha de trigo é gota d´água da falta de respeito de tudo que te falta. Os pingos que agora caem sobre sua janela são os do cimento no frescor de projetos dos outros. Será que, precisando, você conseguiria pedir aos vizinhos para colocar comida pronta na sua porta?.. Dá para fazer abdominais, polichinelo, só não dá para pular corda. Você, que só se mantém sólida na falta de ruídos e na ausência de estranhos, tem que receber sorrindo alheios pedreiros sem máscara. O supermercado não tem farinha! O ar está seco. Seria bom comprar um oxímetro?… Doze mil mortes, você ainda quer pular corda? A briga entre quem acredita e pode fazer quarentena com quem não acredita ou não pode chegou até a sua cerca, percebeu? E você ainda precisa explicar qual é a função da linguagem só contando com wifi a 28 avatares de alunos listados em tela que não te respondem. Farinha, gente farinha! É básico! A curva é uma reta. Vinte três mil mortes, você ainda quer pular corda? A nação se tornou foco das atenções e da doença. São Paulo é um dos epicentros pandêmicos. Por que abertura do comércio agora??? Pouco ou nada se aprende. A britadeira é o ruído no canal, quando é na fática a ênfase, a linguagem não tem como transmitir informação. Aí você se lembra que é do time que mais tem possibilidade de sair vivo e não se dá ao direito de ter medo. Os pedreiros pelo menos têm vindo limpar o que vaza da obra para seu lado. Um bolo ia bem agora, mas não tem farinha! E aí você agradece alunos sinceros sem lição reclamando de sono e chega a também agradecer o ressoar da britadeira porque são normalidade. Mas vê com melancolia o muro que cresce e lhe tapa a luz com medo de que seja símbolo do futuro. Vinte oito mil mortes, você ainda quer pular corda?
(Melissa Suárez)
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Estado de emergência
Tinha um gato às mãos que miava sem parar. Tentava acalmá-lo sem sucesso. Repentinamente, o felino avança em direção ao seu peito, adentra seu corpo, possui-o, acomoda-se no seu interior de modo que ela começa a miar. Tenta dizer umas palavras, soa engasgada. Angustiada, rebate-se e acorda deitada de bruços na cama, golfa uma água azeda quase sufocada. A porta está fechada, é o gato, quer sair. Tem fome. Mia alto enquanto observa ela se levantar lentamente, quase tonta. Abre a porta, volta pra cama, apoia-se com os braços na janela. Abre as cortinas e olha o céu. Está azul e brilhante. É domingo, um domingo de verão. Seus cabelos então dançam o ritmo do vento que bate e ela deita em forma de brisa. Há um copo com água na mesa lateral à cama. Alcança-o, bebe dois, três goles curtos. Não tem pressa, nem precisa. Hoje não vai sair, nem vai trabalhar, nem vai ao mercado, não vai ao ginásio, nem à biblioteca. Hoje vai ficar em casa, assim tem sido. Pode se recuperar do seu pesadelo felino, pode lamber suas feridas. Ficar em casa tem suas vantagens. Está cansada das máscaras que precisa usar pra esquecer-se de si mesma, e pra proteger a si, deseja outras novas mais condizentes com sua figura. Ficar em casa não deixa de ser privilégio. Há comida na tigela, há uma manta, há uma janela pra ver o céu, há vento.
Trintas dias podem passar rápido, a depender. Ou podem ser lentos como um jabuti de apartamento. Neles consegue estar atenta a coisas dantes nunca reparadas. O movimento das nuvens de segunda a sexta-feira, e suas mudanças de direções aos finais de semana. O caminho das formigas até o buraco no móvel de madeira da cozinha, seu esforço pra carregar no lombo a comida da semana tal qual carregar seis sacolas cheias do mercado, três em cada mão. Os movimentos contínuos do gato; cochila de manhã, dorme à tarde, diverte-se à noite com ruídos assombrosos. Em trinta dias repara melhor a crosta de poeira que se forma sob os móveis, dia a dia crescente. E ignora a crosta mais vezes enquanto alterna os olhos a tomar conta da menina que, às cinco em ponto, desce com sua bicicleta e dá dezoito ou vinte voltas em torno da fonte do seu quintal. Depois deixa pousada por cima das roseiras, matando ali as cores múltiplas, promovendo uma emboscada contra si mesma.
Esta manhã viu mais pombos que o normal. O alpendre está imundo. O gato salta pra cima do vidro e arranha-o com as patas em tom de ameaça. Os pombos desdenham do ridículo, depois voam rasantes em desorientação pra pousarem de volta no mesmo alpendre, pra cagarem de volta no mesmo alpendre enquanto ameaçam espelhos que revertem o sol, pinos de repelência, discos velhos em cd-rooms pendurados à janela. Enquanto se arriscam no céu que todos desejam, mas só eles o têm, e sorriem pra o despeito dos que os chamam de ratos.
30 dias podem ser proveitosos. A ordem dos livros na estante já não é a mesma e foi garantida a descoberta de um novo trapo liso pra limpar prateleiras que já não engancha nas farpas. A louça suja acomoda-se mais do que nunca ao formato da pia, a pia, no entanto, luta contra o peso e o incômodo das panelas anti-aderentes. A comida podre dos restos do almoço de ontem escorrega lentamente pela parte interna do saco preto da lixeira, cujo odor é possível sentir tão logo a porta da cozinha é aberta. Seu corpo se toma em pelos. Não há lâminas, não há ninguém pra ver este corpo. É inverno, está felino agora, nem mesmo é possível saber qual o dia deixará de sê-lo. É possível deitar-se novamente, e deita-se, embola-se de um lado ao outro, abraça as pernas como um feto, debate-se por dentro tudo aquilo que pousa por fora, deixa o corpo dorido tomar a forma do impossível. No teto há uma projeção de si, mas a imagem não condiz com a de costume. Indeterminável, indetectável, incompreensível. Soa seu alarme, um som estridente. Sente o estado de emergência e pode, então, ser o que quiser. Até segunda ordem.
(Manuella Bezerra de Melo)
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4h20
4h20 na quebrada ganha sentido de acordo com o contexto, mas para Adelaide Aparecida era sempre a hora de acordar para a vida real, os sonhos tinham que esperar mais um anoitecer. Levantar apressada, acordar as três bênçãos, botar para escovar os dentes, ajeitar a aparência, tomar café com língua, ir para a escola sem jamais esquecer o RG. Depois de encaminhar as crias, era hora de descer a ladeira até o ponto do busão. Lá se ia mais um dia servir a entojada da patroa.
Aparecida gostava de observar o mundo passando pela janela, via os pássaros voando, gente que se misturava com a paisagem do lixão e a fazia lembrar que toda carne é podre, mas alguns corpos apodrecem em vida. Aos poucos, a paisagem ia se transformando em dégradé, o lixo ficando para trás junto com os corpos indesejados. O ônibus para. Já está na Zona Sul! Ela caminha uns minutos à beira mar sentindo a brisa salgada que purifica, recebe a benção da senhora das grandes águas, caminha mais alguns passos e adentra naquela gélida mansão.
De segunda a sábado o ritual era sempre o mesmo, despir-se de seus farrapos trajes, se enfiar no conjunto azul-marinho de um grosseiro Oxford, terrivelmente enfeitado por um avental branco com bordas de laises. Era preciso conservar os signos da Nobreza, dizia a patroa, dona Constância.
Naquela manhã, Adelaide Aparecida estava muito perturbada com as notícias sobre a pandemia, ouviu dizer que sua vizinha, dona Zuleide, tinha sido contaminada pela tal corona vírus. Na rua de cima da viela, teve notícia de um barraco em que havia morrido três da mesma família, parece que essa peste anda mais rápido que rastilho de pólvora.
Estava com os sentimentos confusos, não sabia se acreditava na ferocidade do bicho-corona, ou se preocupava em vencer o monstro cotidiano, a fome. Estava numa encruzilhada, qualquer que fosse o caminho escolhido, sentia cheiro de carne podre. Lembrou-se da infância, das diversas vezes que a vida cruzou com a morte, nesses momentos sua mãe sempre dizia “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”.
As horas passavam rápido e estavam descompassadas de seus pensamentos, Adelaide precisava vencer mais um dia naquela mansão, há anos aquelas paredes eram seu confinamento, seu isolamento social, perambulando por aqueles cômodos perdia a noção de dia e noite, sua hora de referência era sempre 4h20, quando ela despertava do mundo que sonhava ter. Mesmo cansada, ela gostava de chegar no barraco e contar estórias para as bênçãos, era assim que Aparecida chamava seus três filhos. Ela dizia que sonhar é o que nos mantém vivos, a vida real é sem graça demais quando se é favelado. Mas, dessa tal de corona para cá, até esse pequeno prazer estava sendo roubado do povo da comunidade, é muito difícil ter sonhos bonitos usando máscaras.
Naquele fim de tarde, retornou para casa sentindo uma dor no peito, já havia notado sintoma parecido quando algo lhe perturbava o juízo. A vida passava novamente pela janela do busão, mas agora estava escuro, pouca ou quase nenhuma luz apontava o caminho de volta. Adelaide Aparecida se questionava se após a pandemia a vida voltaria ao normal, ao mesmo tempo se viu interpelada pelo seguinte pensamento: “de qual normal estou falando? O dos sonhos nas minhas poucas horas de descanso ou aquele que começa depois das 4h20? Por falar nisso, os meninos lá do morro gostam de marcar no braço essa hora 4h20, um dia descubro o porquê”.
O ônibus para, a porta abre no pé da ladeira, ela desce e inicia sua escalada. Sente novamente aquela dor fina no peito, falta-lhe ar, algo na cabeça pulsa como se tivesse trocado de lugar com o coração. Adelaide sentia medo de ter sido pega pelo bicho-corona, afinal quem ia livrar seus guris de serem devorados pelo monstro-fome? A ladeira era tão íngreme, parecia a do Cristo Redentor. Ela pedia ao seu pai Ogum que encurtasse o caminho de volta para casa, mas naquela noite sentia como se a vida estivesse escapando.
A respiração estava cada vez mais ofegante. Suava frio, sentia raiva da vida, da miséria, da patroa, da ladeira. Tinha sido tão obediente! Uma vida inteira confinada naquela mansão, morava isolada das belezas do mundo. Além disso, desde muito pequena, a sociedade já havia lhe ensinado a usar máscaras, a da pandemia era apenas mais uma. Será que todos esses protocolos haviam sido em vão diante da voracidade do bicho-corona, se perguntava Adelaide. Nesse quase delírio, acabou se esquecendo do inimigo mais perigoso dos favelados, a ganância do bicho-rico!
(Patrícia Alves)