Pandeprosa: o novo epicentro no mundo
“Pandeprosa: o novo epicentro no mundo” é mais uma curadoria realizada por Divanize Carbonieri, com textos a respeito da pandemia de coronavírus e suas consequências. Nesta semana em que o Brasil atingiu a posição de epicentro da Covid-19 no mundo, os textos selecionados são assinados, respectivamente, por Laís Chaffe, Lau Siqueira, Leandro Coelho, Marithê Azevedo, Mario Rui Feliciani, Luana Madrepérola, Giovana Damaceno, Manoel Herzog, Artur Gomes, André Alvez, Silvana Schultze, Lilia Guerra e Márcio Mendes.
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Covid ao prazer
– Vamos tomar todas as precauções – disse o homem de negócios, ao puxar o pino da granada.
(Laís Chaffe)
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Acordou mais cedo para a caminhada rotineira. Deu 58 voltas na sala, 43 na cozinha fez 32 flexões no corredor e agora está fazendo roleta russa no banheiro.
(Lau Siqueira)
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Álcool em gel
– Já ouviu falar no vírus do morcego que chegou lá da China, seu Paulo?
– Sério? Jesus amado! Tá amarrado!
– Sim. Ele transmite pela mão. Dá pra prevenir se usar álcool em gel…
– Opa. Quanto é que a gente tá cobrando por ele?
– Dez reais o pote de 500 ml.
– Vai lá e muda a plaquinha. Vamos subir pra cinquenta…
– Que isso, seu Paulo! O pessoal pode morrer se não tiver como comprar…
– Quem disse isso?
– O médico na televisão…
-Vão morrer se não usarem? Então aumenta pra cento e vinte! Vai lá, rápido!
– Mas seu Paulo! Vão dizer que é um roubo!
– Se disserem isso, fala pra eles que é a tal lei da oferta e da demanda.
– Lei da oferta e da demanda? Mas e a lei do amar o próximo como quem ama a si mesmo?
– Essa lei não pegou…
(Leandro Coelho)
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Houve uma época em que circulou pelo planeta terra, um vírus que atingia o cérebro dos humanos e mudava a rota dos neurotransmissores, criando sérios problemas de percepção nos indivíduos atingidos pelo CONFUS. Tanto que eles passaram a olhar para a lua cheia e a viam plana. De percepção alterada, que acreditavam piamente estar certa, passaram a criar seitas obstinadas e obsessivas pela destruição e morte. Foi assim que o planeta Terra se extinguiu.
(Marithê Azevedo)
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Cerco
A noite, sempre aterrorizante, agora é de paz. Não é mais má conselheira. Quando dorme, não sonha. Quando sonha, não faz sentido, doce caos. A insônia é de leitura e streaming. Santo streaming, não há cérebro que o vença. Maratonas. A dor é o dia. O amor, ainda que na luz do sol, é noite também. Quando ele vem, apaga. Eclipse. A luz sem amor é cerco de notícia, números, gráficos e desgovernos, mas a estes ainda resiste. Contra estes tem suas trincheiras, que as sabe cavar, já sofreu deles muitos ataques. O que não sabe mais enfrentar é a guerrilha do passado, que enovela o peito. Lã macia. Sufoco. A casa velha é mais velha do que sua vida. Abrigou avós, pai, irmãos e ele próprio em outras juventudes. Mãe! Abrigou também inquilinos, que não conheceu. É linda com suas texturas, pátinas de cores bem compostas pelo tempo. Muito tempo. Tem seus sóis e tem seus animais de folia, é certo. Mas entre os sois e os bichos correm todos aqueles passos, que não pode mais fechar atrás de si.
(Mario Rui Feliciani)
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O vírus conspiracionista
Nós nos sentamos no banco daquele parque depois de uma caminhada, uma das formas de exercícios permitidas pelo Primeiro Ministro em tempos de pandemia. Ele me contava sobre suas teorias envolvendo o novo vírus. Eu sempre achei teorias da conspiração maluquice. Eu cresci tendo uma péssima relação com o meu pai, que acreditava fielmente que um dia encontraria a pedra filosofal e tantas outras loucuras de um delírio típico de drogas psicodélicas dos anos 70. Esses delírios não me fizeram ter uma péssima relação com o meu pai, mas a nossa péssima relação me fez odiar esses delírios e toda a ideia de um hippie velho falando de conspirações numa mesa de bar.
Agora eu estava ali ouvindo meu marido dizer maluquices um tanto quanto similares. Minha primeira reação foi refutá-las e relembrar tudo o que eu vi durante a minha vida até o momento da morte do meu pai, mas ao mesmo tempo eu sentia pena. Não é fácil permanecer são nesse mundo, as teorias da conspiração são o lado avesso da criança que acredita em Papai Noel, não é acreditar no absurdo, mas é desacreditar do óbvio. Crescemos tão cercados de mentiras que já não sabemos mais no que acreditar. O governo mente, a imprensa mente… Antes disso os nossos pais, os amigos, os nossos amores da juventude… Todos mentem. Se as pessoas que mais amamos mentiram ao menos uma vez em nossa vida em quem nos resta acreditar?
Eu me dou conta de que os corações feridos pela mentira fazem parte da lista de fatores de risco em tempos de pandemia. Eu não refuto mais as teorias malucas, eu apenas ouço e continuo na espera dessa fase passar.
(Luana Madrepérola)
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Sonho realizado antes de morrer
Aristides entrou na saleta disfarçando o tremor nas mãos e o gelo que lhe contraía a espinha. Trazia biscoitos, requeijão, batatas chips, ketchup e coca-cola. Era o pedido para o lanche da tarde.
Deixou a bandeja e não esperou agradecimento, pois sabia que nunca o ouviria do presidente.
– Que que é? Vai ficar plantado aí? – disse o chefe, sem levantar a cabeça – Já fez seu serviço, agora chispa, que eu tô com muita coisa aqui.
Aristides puxou a arma que ganhara de presente do filho do chefe e apontou para a testa.
– “Filho da puta!”
Foi só o tempo de o chefe erguer a cabeça e receber o único tiro. Aristides apertou as pálpebras, soltou uma gargalhada e o homem tombou sobre a mesa.
– Tamo livre.
Acordou de súbito, olhos estatelados, porém parecia sorrir. Não estava consciente; ainda assim sorria um riso de alegria de criança travessa. O enfermeiro sentiu sua agitação que, apesar da respiração sôfrega, até poucos minutos dormia profundamente, sedado que estava.
Conferiu os tubos, tocou-lhe o ombro, fitou-o com pesar.
– Andou sonhando, seu Aristides… – disse, com carinho – Está tudo bem, não se agite.
Aristides cerrou os olhos. Os lábios mantiveram um sorriso de lado. O enfermeiro juntou suas mãos com a do paciente e rezou um Pai Nosso.
(Giovana Damaceno)
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Desfrutável mundo novo
Quando Renato finalmente se sentiu seguro pra sair de sua câmara de bário particular, dois meses depois da liberação oficial e visto que ninguém das ruas se havia contaminado, sua primeira providência foi convidar pra jantar a amiga virtual mais regular daquele ano de confinamento e videossexo: Amanda.
O jantar foi um desastre, pois no restaurante eleito não havia mais garçons. O próprio dono, um ex chef que se tornara empresário no mundo antigo, resolvera cozinhar e atender pessoalmente os clientes. Um chato que, com excessiva amabilidade, não deixou o casal em paz, perdigotando o prato e roçando os testículos no ombro de Renato. No apartamento, depois do jantar malogrado, o encontro físico foi também decepcionante. Despediram-se pela manhã, cada qual guardando a certeza interna que não queria reencontrar o outro. Na noite daquele segundo dia Renato procurou Vanessa, a segunda mais frequente namorada virtual, e fizeram um videossexo esfuziante. Embora se pudessem encontrar fisicamente preferiram manter o que vinha bem. Vanessa não contou, e nem o precisava fazer, na anterior noite passara por um também frustrante encontro presencial, com o mais frequente de seus amores virtuais. Renato era o segundo. Estão juntos até hoje, cada qual em seu computador, ou casa.
Pro trabalho Renato voltou no dia seguinte. Tinha um pequeno comércio. Voltou só, seus colaboradores haviam desenvolvido habilidades que lhes provinham o sustento melhor que sendo empregados de Renato. Sozinho na loja, ele não se viu tão desamparado. Deu conta de atender aos fregueses, pois os pedidos eram todos virtuais. Não vendia tanto, mas também não tinha despesas de manutenção. Foi assim que, ao cabo de uma semana, ele deixou de ir à loja, e se entregou lascivo às delícias do home-ócio.
(Manoel Herzog)
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ou viram verme vírus
para Uilcon Pereira in Memória
Era uma vez um país assombradado que não tinha mais pau nem brasa apenas zil. Passeando por São Paulo perto do monumento do Ipiranga ouvi o vírus ou viram o verme com a língua frouxa que não conseguir completar nenhuma frase sem o tá okei. E daí¿ e daí¿ e daí¿… ouvi dizer que os generais usavam o verme para espantar as criancinhas e quando ele era criança pulava o muro para roubar laranjas na casa do deputado Rubens Paiva lá numa cidadezinha no interior de São Paulo onde ele morava quando seus pais vieram da Itália para infernizar a vida dos habitantes desse país assombradado.
Dizem que ele faz parte de uma milicial quadrilha que tomou o planalto de assalto e anda incentivando a proliferação do vírus, porque desregrado como um verme, nasceu para contaminar intestinos alheios, e teme que a população de assombradado queime suas hemorróidas flácidas que a faca do Adélio não conseguiu sangrar.
Dizem ainda que tem 4 filhotes vermizinhos que o acompanham fazendo rachadinhas aqui e acolá com um outro verme escorregadio que atende pelo codinome de Queiroz mas que não é Raquel e toma banho na banheira de milcheque, onde o verme Guedes se fantasia de ministro da res-pública, e são capazes de explodir a moralidade desse país assombradado que já perdeu mais de 20 mil vidas para essa tal de pandemia. E nas rodinhas de conversas entre outros vermes no planalto, vazou um áudiovírus, onde o verme presidente, não esconde entre a língua e os seus dentes, que é isso mesmo o que ele mais queria.
(Artur Gomes)
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Quando o vento adoeceu
O corvo crocitou no beiral da janela.
De seus olhos amarelos escapava um brilho de aviso.
O vento estava doente e demoramos a perceber.
É uma gripe, logo se vai (pensamos), o vento sempre passa.
Vieram as tristes partidas, um crescendo sem fim.
Seguramos o pavor sem nos tocar, já não nos conhecíamos atrás das máscaras, apenas a confiança nas orações (de alguns) e a esperança nas asas negras do corvo girando em torno do céu.
Um dia os pássaros encontraram a semente. O corvo voou até a janela, num gesto de asas abertas: podem sair, o mal invisível morreu, acabamos com todos eles, o vento está limpo novamente.
E quando nos olhamos, ainda apreensivos, ele disse: “nunca mais”.
Lá fora o sol já não era o mesmo e precisávamos plantar um novo jardim.
E agora o vento sopra limpo, o silêncio reina, ventila as dores para além do horizonte.
(André Alvez)
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Quase borboleta
Dois, três casulos, pendurados na moldura da janela, do lado de dentro do quarto. O último dos quartos, sem cama, apenas um velho sofá. A vista mais bonita da casa. Duas semanas depois, os casulos haviam sumido. Viraram borboletas? Foram removidos? Quem os removeu, se há muito a casa não é limpa? O dono temporário da casa, possivelmente. O mesmo que, todos os dias abre todas as janelas para que a casa seja arejada, faça frio ou calor, há 43 anos.
Está sozinho, este dono, como deve ser. Sobre a mesa da sala, as taças de cristal embaladas em jornal, à espera da mudança que talvez não aconteça, que felizmente não aconteceu, porque o quase, o mesmo que atingiu o resto do mundo, impediu. Malas e caixas de papelão, sacos plásticos de lixo, grandes e cheios, atravancam o caminho, que já era atravancado, repleto de móveis acumulados ao longo das décadas, grandes como a família exigia, essa mesma família que hoje é dispersa e mal se fala.
No corredor, um painel de fotografias, a mais nova delas com mais de cinco anos. Ninguém mais se reúne para tirar fotografias, muito antes dela morrer já não faziam isso. Ela deve ter ficado feliz, ela que não gostava de fotografias. Mas gostava de borboletas. Não teria deixado que ele removesse os casulos. Ele teria sido capaz de remover os casulos, impedindo a transformação em borboletas? Logo ele, o dono daquele jardim?
A televisão é diariamente ligada, mas por muitas vezes nada sintoniza. Não domina os botões, os controles, o manejo e a navegação. Espera por um filho – uma das filhas que ainda o visitam – para que volte a assistir a algum canal. Não quer mais saber de ouvir notícias. Ele não. Diariamente, noite e dia, em sua cabeça, martelando as preocupações que há muito já deveria ter abandonado, porque ocuparam tempo demais, uma vida inteira, a vida que ainda vive, e que ainda espera viver. Somente uma vez testemunhei tanta vontade de viver, tanta certeza de merecimento por viver. Bonito, isso. Bonita, a casa, os móveis, as fotografias. Marrom, toda marrom. Uma mão de tinta renovou tudo, trouxe luminosidade, porque um pouco mais clara do que a anterior. Intencional? Uma casa mais alegre, à espera de tempos mais felizes – por que não uma cor mais alegre quando ainda tinha intenção de ali viver?
Fechei o portão, tranquei a porta da frente, tirei o jornal da sacola e coloquei sobre a mesa de centro. Ainda lê jornais em papel, sempre que os consegue. Lavei a louça, fechei o lixo, pus roupa para lavar. Aguardei, estendi a roupa. Dei tchau, à distância, não sei quando volto. Semana que vem, talvez na outra. Quinze dias, no máximo. Pergunto se tem comido, diz que sim. A campainha toca. Um catador de latinhas o chama com intimidade, pergunto se tem recebido gente. Garante que não, diz que no máximo dá dois reais parta que não mais voltem. Digo que voltam porque dá os dois reais. Lembro que não pode ir até o portão, não deve ter contato com ninguém. Eu sei, eu sei, diz com impaciência. Acredito e não acredito, não tenho como saber. Sempre fez o que quis. Por anos, atendendo a pedintes, na rua e na porta de casa. Talvez por isso nunca tenha lhe faltado um teto sobre a cabeça, comida na mesa, roupas para vestir. As camisas e camisetas cada vez mais puídas que penduro no varal.
Despede-se com alegria, assim como me recebe. Talvez não sinta falta dos beijos e dos toques, só passou a dá-los quando crescemos, e encontramos nossos próprios sinais de afeto. Talvez se sinta seguro com essas visitas rápidas, de pouco menos de uma hora, na qual somente é feito e dito o que é preciso. Sem espaço para penduricalhos. Talvez por isso não tenha restringido a retirada dos bibelôs. “Essa casa é muito cheia”, concordou rapidamente. Muitos dos bibelôs ainda nos sacos pretos, mas não mais à sua vista. Uma nova casa, uma nova vida. Até quando?
(Silvana Schultze)
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Uma crônica
Trabalho num setor considerado essencial. Como muitos brasileiros, não consigo exercer minha função de forma remota. Continuo utilizando o transporte público. Trem, ônibus. Caminhando trechos a pé. A cidade de São Paulo está mais vazia sim. Longe de atingir o que seria ideal para o momento, mas está. Vitrines já não exibem manequins, escondidas atrás das portas de aço. Não conto nenhuma novidade.
Muitas ruas, ao menos na zona leste, estão escuras. Não sei o que há. Estou passando neste instante por uma longa avenida. As lâmpadas estão apagadas. Mas estou dentro de um ônibus. Iluminado. Vazio até. Da minha janela observo que, os miseráveis, (perdoem os que consideram a palavra inconveniente, mas, sim, são miseráveis todos os que vivem em estado de miséria) estão nos mesmos lugares. Nos faróis, nas esquinas. Deitados debaixo de qualquer cobertura. Adormecidos, enquanto desfrutam o torpor das substâncias que os consolam. Ou, quando sentem muita fome. Minha avó dizia que, o sono alimenta. É comum que, o faminto, tente domar a fúria de seu ventre vazio, procurando dormir. Não é tarefa para principiantes, claro. Mas, os experimentados, peritos em pindaíba, conseguem desenvolvê-la sem muita dificuldade.
Pois, como eu estava contando, notei da minha janela que, os miseráveis, seguem praticando seus ofícios, suas tarefas diárias. Cumprem a rotina. Há de haver alguma ordem também em meio à miséria. Um miserável não pode, simplesmente, estender sua miserável mão no lugar em que bem entender. Precisa, antes de se estabelecer, checar se o ponto já não pertence a trabalhadores fixos. Operários dos rodinhos, das flanelas. Dos sorrisos vazios e olhos tristes. Dos bebês desnutridos à tiracolo…não é só chegar, chegando. Não é assim. Bagunçado.
Outra coisa chamou minha atenção. A maioria dos miseráveis, sim os que vivem em estado de miséria, aderiram a regra. Estão utilizando máscaras. Alguns, não usam sapatos. Outros, não vestem casacos. Mas, exibem suas máscaras. Mal conservadas. Encardidas. Rasgadas. Ineficazes, então. Mas, que, servem como uma pincelada de dignidade. Eu acho também que, funcionam como uma maneira de preservarem seus rostos. Manjados. Humilhados. Eu fico achando tanta coisa… de repente, é um jeito de se sentirem inseridos. Afinal, quase todo mundo está com seu pedaço de pano ou papel, grudado na cara. Os ricos, os pobres. Patrões, empregados. Tem um ou outro chato enchendo a paciência, querendo furar a orientação, mas, com esses, nem vale a pena gastar caracteres.
Desembarquei numa rua que também está escura. Mas tem bastante gente circulando. Muita coisa mudou no meu caminho. Dona Lourdes, que vendia frango fresco desde a memória mais tenra que guardo desta avenida, fechou a lojinha. Conversamos logo no início das medidas de isolamento e ela me explicou que, as vendas haviam caído demais. E que, o dono do salão, não tinha dado refresco no acerto do aluguel. Eu disse que ele era louco, perdendo a inquilina tão antiga, que pagava direitinho. Que deviam tentar um acordo. Pelo visto, não deu certo. Eu gostava de comprar frango na dona Lourdes, mas, de verdade? Achando mais uma vez, penso que ela devia estar bem cansada. É estranho passar e não vê-la assistindo o jornal em sua pequena tevê antiga, enquanto esperava a freguesia. Mas me tranquiliza saber que ela não está lá pois, financeiramente, já não valia a pena. Tantos outros, não estão, porquê perderam suas vidas.
Há segmentos funcionando normalmente. O cheiro e a fumaça subindo do bequinho não me deixam mentir. Na frente da sinuca, há uma placa escrita em caligrafia esforçada avisando: proibida a permanência sem máscara no recinto. Os jogadores não se fazem de rogados. Exercem cidadania usando coberturas estampadas com emblemas de time, sorrisos assustadores… até as crianças parecem adaptadas. As meninas combinam máscaras com tiaras e boininhas.
Eu tenho medo de nunca mais sairmos mostrando o rosto. Livremente. Tenho medo também do jeito que, rapidamente, nos moldamos às situações. Parece que não há incômodo. Não há pressa em fazer deste momento um passado distante. O quanto antes. A gente tende a se acostumar. Passamos tranquilamente ao lado de crianças que dormem na rua. Ignoramos os pedidos recorrentes de auxílio que nos confrontam todos os dias. Almoçamos e jantamos com apetite, cientes de que, perto, bem perto de nós, panelas descansam vazias. Lamentamos as tragédias que a tevê nos mostra mastigando pipoca. Compartilhamos indignação sobre o massacre diário de inocentes em nossas linhas do tempo, entre receitas de bolo, anúncios de lives, piadas, canções das nossas vidas… afinal de contas, precisamos descontrair. Ou morreremos. Não somos a palmatória do mundo. Afinal de contas, não é preciso chorar para demonstrar tristeza. Tristeza que, por sinal, não paga dívida. Nem traz o morto de volta. Então, a gente vai levando. Se esforçando pra fazer ornar a cor da máscara com a das meias.
(Lilia Guerra)
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Viagem rumo ao Covid-19
No interior do Brasil Central, vivia uma costureira por nome de Vitória dos Santos, pessoa determinada, que nutria, em seu íntimo, uma enorme vontade de conhecer o mar.
No entanto, suas economias mal davam para manter as despesas do seu cotidiano, ainda mais para ousar fazer uma viagem em um transatlântico pelo litoral brasileiro.
O seu mundo social resumia-se entre costuras, tecidos, clientela, vizinhos e familiares.
Ela nunca havia saído de sua cidade, nem tampouco feito uma viagem de avião, quanto menos fazer um cruzeiro ao longo do litoral do Brasil, porém alimentava esse desejo todos os dias da sua vida.
Mesmo depois de um ano inteiro guardando suas poucas economias, conquistadas com muito suor de seu árduo trabalho, o valor amealhado durante esse tempo era insuficiente para a realização do seu grande sonho.
Porém, de alguma forma que não sabia o porquê, Vitória sentia que um dia poderia conquistar tal intento e sempre imaginava a bordo de um grande navio, navegando mar adentro.
Contudo, inesperadamente, a sorte bateu em sua porta, pois ela havia recebido uma pequena herança deixada pela sua tia avó solteira, pois sempre cuidou desta com zelo e atenção.
Além da casa no Centro da cidade, a tia deixou a ela uma aposentadoria privada, que a contemplava com o valor pecuniário total do investimento, porque tal qual a própria Vitória a sua tia não tinha filhos e fez em nome da dedicada sobrinha.
Assim, que conseguiu resolver as questões de ordem documental, da referida herança, Vitória tratou logo de agilizar meios para que o seu tão esperado sonho se tornasse realidade.
Vitória então, fez todo o procedimento de praxe, junto à agência de viagem, reservando voo e hotel até ao litoral de São Paulo e de lá zarpar em um cruzeiro, que navegaria a costa brasileira, saindo de Santos e passando por Ilhabela e Balneário Camboriú, litoral que sempre desejou conhecer e que agora havia chegado esse momento.
Já no hotel em São Paulo, prestes a embarcar em um cruzeiro pela primeira vez, bem no início de março, Vitória estava apreensiva por conta dos noticiários, principalmente sobre navios que precisariam ficar em quarentena por conta da pandemia gerada pelo COVID-19.
Porém, ela não desistiu de viajar, mas ainda estava com muita dúvida sobre como se prevenir e quais os reais riscos para a sua saúde, se porventura fosse detectado algum caso em sua embarcação. Todavia, não desanimou e nem tão pouco entrou em pânico por conta dos noticiários e também porque até pouco tempo atrás não sabia direito nem como se transmitia tal doença. Como ainda não havia casos no país, procurou não se preocupar tanto. Mas pensou que, ao estar dentro de um navio, em contato com diversas pessoas, poderia estar sujeita à contaminação de tal enfermidade e ficou um tanto quanto receosa, ainda mais sabendo dos casos de quarentena, que segundo noticiários alardeavam aos quatro cantos do mundo sobre os navios Costa Smeralda, na Itália, o Diamond Princess, no Japão e o MS Westerdam, no Camboja.
A precaução da Vitória tinha fundamento, mas não havia motivo para cancelar a viagem, caso o cruzeiro não tenha registrado pessoas infectadas pelo vírus, afirmavam os médicos. No entanto, era preciso ficar atento, pois a lista de países infectados pelo Coronavírus só aumentava a cada dia, em decorrência da doença estar se espalhando pelo mundo.
Muito curiosa e prevenida, Vitória procurava se informar sobre tudo a respeito do tal vírus e ainda segundo especialistas, afirmavam que o Coronavírus – Covid-19 tem levantado apreensão na comunidade médica internacional com razão. Porém, ainda não via motivo para pânico. Principalmente no Brasil. Razão pela qual não recomendaria o cancelamento da viagem. Especialmente que fosse pela costa nacional. O médico, no entanto, alertava para a taxa de letalidade da doença. Portanto, era preciso ter atenção nos procedimentos de praxe. No mais a viagem poderia correr normalmente. Então, ela ficou bem mais tranquila para prosseguir com a sua viagem dos sonhos.
Em suas pesquisas de informações, Vitória ficou bem informada a respeito do Coronavírus. Sabia que lavar as mãos e os alimentos era fundamental, em qualquer época, inclusive, para evitar a proliferação também de outros vírus. Todo cuidado era pouco em se tratando de doenças contagiosas, assim como usar álcool-gel sempre que possível, evitar contatos com pessoas que apresentassem sintomas e que tivessem estado em áreas contaminadas nos últimos meses.
No entanto, Vitória ficou tentando entender uma maneira de seguir tais procedimentos, posto que, em um navio estaria num ambiente quase que confinado e em contato constante com pessoas de diversos lugares, porém, como no Brasil na época, ainda não havia caso de doença ou apenas poucos infectados e também porque a companhia do cruzeiro estava adotando protocolo de segurança, comum em relação ao possível Coronavírus, tomando as medidas determinadas pelas autoridades competentes, como a medir temperaturas antes do embarque, assim como verificar se o passageiro apresentasse sintomas como calafrios, tosse, ou dificuldades respiratórias, e principalmente a triagem de passageiros que estiveram em locais mais atingidos pelo surto, entre outras medidas.
Por todos esses cuidados, Vitória ficou bem mais tranquila em relação à viagem dos seus sonhos, após, seguiria rumo à Porto Seguro na Bahia, o seu outro sonho. E assim, ela embarcou munida de confiança, desejos e emoções para curtir as suas férias que, naquele momento estaria se realizando verdadeiramente.
O mini cruzeiro de três noites, que partiu naquele mês de março de Santos e deveria passar por Ilhabela e Balneário Camboriú, retornaria para o seu local de origem após o trajeto do tour.
Por ironia do destino, o navio turístico em que se encontrava Vitória, teve o seu percurso alterado, uma vez que as prefeituras das cidades de passagem, ao saberem através dos meios de comunicação a existência de suspeitas, possivelmente, infectados pelo Coronavírus no navio, por segurança da sua população, não permitiram o desembarque dos passageiros. E a situação parecia ter sido completamente ignorada durante a viagem, sendo que as aglomerações continuaram, apesar do surgimento de casos suspeitos.
Mesmo após o fato de três dos passageiros serem confirmados com o Covid-19 e mais de trinta pessoas, inclusive Vitória, serem consideradas suspeitas de estarem infectadas, o navio, ainda assim, continuava em seu curso normal. Apenas os casos urgentes poderiam desembarcar para a assistência à saúde.
Os demais passageiros deveriam permanecer em quarentena, após o surgimento de casos sintomáticos a bordo, pois o contágio do Coronavírus é rápido e silencioso, sendo que uma pessoa infectada transmite esse vírus para dois ou mais indivíduos, dentro de um mesmo espaço.
Um outro agravante é que a bordo do navio, com a falta de informação, excesso de contato físico, além da ausência de cuidados específicos com os eventuais casos e devido às constantes festas e diversões, que causavam aglomerações, uma das formas de contágio do coronavírus foi que levou Vitória também a sentir dor de cabeça, cansaço, febre e falta de ar.
Porém, após medicada, logo apresentou um ligeiro quadro de melhoras, o suficiente para refletir se o tal passeio no cruzeiro, na costa brasileira teria sido, naquele momento, a opção mais sensata que havia tomado em toda a sua vida.
A partir desse momento, o tão sonhado passeio tornava-se um enorme pesadelo, pelo fato dela estar a bordo de um navio com pessoas desconhecidas, longe dos seus familiares e ainda sem poder divertir e usufruir verdadeiramente e pior, sem poder desembarcar para conhecer os lugares turísticos que faziam parte do pacote. E ainda, acima de tudo, era obrigada a ficar de quarentena sem contato direto com o continente, apenas podendo ver do alto do navio as belas praias maravilhosas, sem, no entanto, poder usufruir de tal encanto.
Enfim, Vitória, desiludida e decepcionada com toda a situação pandêmica vivenciada por ela, chegou à conclusão que esse passeio estava mais para um “programa de índio”, ditado muito usado pelos habitantes da cidade de onde veio, que a realização de uma imensa aspiração, tornou-se sim, uma viagem rumo ao Covid-19.
(Márcio Mendes)
Mônica Maestre de aguiar
Sensacional !
Mônica Maestre de aguiar
SensacionAl!
Artur Gomes
Divanize, grato minha querida amiga , seleção de primeira , uma bela viagem ao imaginário de escritas poderosas, feliz por fazer parte dessa manifestação. grande abraço
Roberta sell
óTIMOS e de uma forma tão triste né, perceber que a humanidade não tem humanidade.
Vanessa
Parabéns!
Nélio Rossine de oliveira
Muito legal mesmo , faz você PARAr para refletir, parabéns aos autores.
Vale UM destaque para o terceiro texto, do autor LEANDRO coelho… muito bem sacado!
Silvia Neves tavare
Lindo trabalho, muito relevante! Leituras enriquecedoras mesmo! Adorei o texto do Leandro coelho , pois rapidamente nos faz pensar-repensar sobre nossa sociedade, muito pertinente! Parabéns!
Patrícia Alves
Nossa, adorei Tudo Que Li! Que Espaço Genial. Parabéns, Diva Por Criar Essa Página.