Paraíba, Ceará e Sergipe (com gostinho mineiro)
A curadoria “Paraíba, Ceará e Sergipe (com gostinho mineiro)” é assinada pelo escritor Luiz Renato Souza Pinto.
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Paraíba, Ceará e Sergipe (com gostinho mineiro)
Pedro Bomba mora em Belo Horizonte. Mas tenho a impressão de que por onde anda leva os ares de Aracaju, impregnando de poesia o oxigênio que respira. Alexandre Lucas é um poeta orgânico, trabalha na “Lira Nordestina”, berço do cordel que inunda todo o Cariri, feito vazante em bocado de cheia. São alguns poetas que admiro, mas quero apresentar primeiro um poema de um que não conheço pessoalmente, o genial paraibano da gota, Jessier Quirino, com seu impagável “Parafuso de cabo de serrote”.
Tem uma placa de Fanta encardida
A bodega da rua enladeirada
Meia dúzia de portas arqueadas
E uma grande ingazeira na esquina
A ladeira pra frente se declina
E a calçada vai reta nivelada
Forma palmos de altura de calçada
Que nos dias de feira o bodegueiro
Faz comércio rasteiro e barateiro
Num assoalho de lona amarelada.
Se espalha uma colcha de mangalho:
É cabestro, é cangalha e é peixeira
Urupema, pilão, desnatadeira
Candeeiro, cabaço e armador
Enxadeco, fueiro, e amolador
Alpercata, chicote e landuá
Arataca, bisaco e alguidar
Pé de cabra, chocalho e dobradiça
Se olhar duma vez dá uma doidiça
Que é capaz do matuto se endoidar.
É bodega pequena cor de gis
Sortimento surtindo grande efeito
Meia dúzia de frascos de confeito
Carrossel de açúcar dos guris
Querosene se encontra nos barris
Onde a gata amamenta a gataiada
Sacaria de boca arregaçada
Gargarejo de milhos e farelos
Dois ou três tamboretes em flagelo
Pro conforto de toda freguesada.
No balcão de madeira descascada
Duas torres de vidro são vitrines
A de cá mais parece um magazine
Com perfume e cartelas de Gillete
Brilhantina safada, canivete
Sabonete, batom… tudo entrempado
Filizolla balança bem ao lado
Seus dois pratos com pesos reluzentes
Dá justeza de peso a toda gente
Convencendo o freguês desconfiado.
A Segunda vitrine é de pão doce
É tareco, siquilho e cocorote
Broa, solda, bolacha de pacote
Bolo fofo e jaú esfarofado
Um porrete serrado e lapidado
Faz o peso prum março de papel
Se embrulha de tudo a granel
E por dentro se encontra uma gaveta
Donde desembainha-se a caderneta
Do freguês pagador e mais fiel.
Prateleiras são tábuas enjanbradas
Com um caibro servindo de escora
Tem também não sei qual Nossa Senhora
Com um jarrinho de louça bem do lado
Um trapézio de flandres areados
Um jirau com manteiga de latão
Encostado ao lado do balcão
Um caneiro embicando uma lapada
Passa as costas da mão pelas beiçadas
Se apruma e sai dando trupicão.
Tem cabides de copos pendurados
E um curral de cachaça e de conhaque
Logo ao lado se vê carne de charque
Tira gosto dos goles caneados
Pelotões de garrafas bem fardados
Nas paredes e dentro dos caixotes
Uma rodilha de fumo dando um bote
E um trinchete enfiado num sabão
E o bodegueiro despacha ao artesão
Um parafuso de cabo de serrote.
Pedro Bomba eu conheci na cidade de Crato-CE, mas sua poesia entrou em meus ouvidos por intermédio de David Henrique e Luna Vitrolira, durante o “Arte da Palavra” no SESC Arsenal, aqui em Cuiabá. Pedi a ele que me indicasse um poema para que publicasse aqui, e ele falou deste “Amor Coragem” que aponto para vocês:
AMOR CORAGEM
O nome que se dá ao amor
Seja ele qual for,
Ou qual tipo seja
No primeiro gole de cerveja
Molha e mergulha as palavras
Talvez você saiba
Que arame que fura farpado
Mata o amor de infarto,
Que não é brincadeira
Cerca cercando
Gaiolando prendendo
Os braços abafando
O amor se encolhendo
Quase se convencendo
De que é assim sempre
O amor abafa a gente
Que nem polícia faz,
o amor é assim, né rapaz
corrente,
que prende
e
para.
Parem!
A minha boca fala de outro amor
amor coragem
Que é alicate
Torando a cerca
De qualquer pastagem
Amor Coragem
Que age
Sem máscara, sem disfarce,
Que escreve na própria face
As marcas da vida
Essa ideia fudida
De propriedade
Vai deixar de existir
Coragem, amor, coragem
Pois as pernas são pra caminhar
Pular catraca,
correr da repressão,
dançar na rua,
subir ladeira,
chutar bomba de opressão
as suas pernas amor,
são pra se confundir com as minhas
quando nessa estrada
tu caminhas e vai longe
e vai porque carrega
de monte
o movimento
das coisas
Coragem amor, coragem
Pra derrubar as dores que perseguem essas dias
Derrubar a apatia,
E claro, Michel Temer
Eu sei que nessa cidade tem um monte de gente
Que não liga para nada do que se diz
Eu ouvi,
Mas é que a coragem é assim
Rebelde, ousada,
Não respeita nada
E quando se junta com amor
Ela é o que há de mais revolucionária
Fecho com Alexandre Lucas, que mora no Crato e está à frente de um projeto que envolve a comunidade do Gesso, onde dei uma oficina de poesia em março de 2018, cidade na qual conheci vários poetas com intensa produção cultural. Do Cariri sopra um poema de casca grossa. E a verve do poeta se embebeda de poesia…
No calor da pele
Sinto a respiração
Falando melodias quentes
Ainda balanço na rede a preguiça e as lembranças
O tempo exige pressa
Tenho que correr para tomar café e me encontrar com asfalto e concreto
Talvez sobre tempo para um gole de água
Mas não sei se terá nem meio dedo de prosa
Mesmo assim, tempero as palavras para que a vida tenha gosto.
*
Luiz Renato Souza Pinto lançou, em 1998, o romance Matrinchã do Teles Pires, que trata da colonização do norte do Mato Grosso ao longo dos anos setenta, durante a ditadura militar (o livro ganhou nova edição em 2019). Em 2014, veio Flor do ingá, desdobrando a aventura e apresentando o cotidiano de um casal que se conhece em Londrina, Paraná, e vem para o Mato Grosso, quando então se separam. Em 2018, Xibio completa a trilogia, destacando a vinda de nordestinos para garimpos de diamante em Mato Grosso e Goiás. O autor também publicou Duplo sentido (crônicas), em 2016, em parceria com o pernambucano Carlos Barros e Gênero, número, graal (poemas) em 2017, ganhador do II Prêmio Mato Grosso de Literatura.