Poemas de Bruna Martins
Bruna Martins (2000- ) nasceu em Itamarati de Minas, na Zona da Mata Mineira, e vive em São Paulo. É poeta, escritora, editora e graduanda em Letras Português e Francês pela Universidade de São Paulo. Colabora no Boletim 3×22 (1822 – 1922 – 2022), da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP. Sua produção busca diálogos com outras linguagens, além de refletir sobre o dialeto e a vivência mineiros, sob um corpo feminino, em confronto com a experiência nas grandes cidades. Contato: bruna.xm@usp.br
Os sete poemas abaixo foram organizados de modo temático.
A escritura do feminino
- Confissão
Geraes
- Do alto da Urca, conjuro
- Bão mesmo é leite gordo
- Meninas tão gerais
Quarentena & derivados
- Às vítimas da civilização
- Grandes eventos no noticiário
In memoriam de João Pedro
- Três vezes santo
***
Confissão
A poesia é insustentável.
Gasto muita água no banho
pensando, tentando, batendo o verso:
Quanto mais eu me esfrego,
mais te degrado,
ó insustentável poesia.
Por fim eu escorrego,
o ralo diante do rosto,
meu depósito secreto de poemas.
Cabelos, fungos, bactérias.
A água flui nessa sociedade,
monges poetas copiando copiando
meu corpo original.
Uma poesia que não sustenta os próprios seios:
dói na coluna o peso do sexo
que limpo e sujo e limpo e sujo
no fazer poeteiro.
É insustentável
a culpa da poesia,
mas eu gosto.
*
Do alto da Urca, conjuro
Jamais verei um navio sem lembrar.
Da Inocência, foi.
Leva bauxita?
Poeira de enrubescer.
Leva seios?
Das meninas tão gerais.
Leva discursos? Fascistas tropicais?
Pesam trezentos anos
sobre o meu corpo marítimo
ou seriam toneladas
de lama?
Morena,
mas bonita
mas diferente de vocês.
Passo o filtro na face
fico branca à la française
e recordo:
que nunca fui ao Leblon
que essa areia é suja
e a guerra é outra
adentro.
*
Bão mesmo é leite gordo
Sempre aberto o portão de casa,
anfitriã senhora à espera de alguém,
qualquer ôpa palma pó entrá!
Do balanço ela impera seu reino imóvel,
cátedra dos artríticos e artrósicos.
Ouvir: sua arma de guerra.
Somente o leiteiro adentra,
moto-boi sagaz.
Dois litros de leite sobre a mesa,
deixa-os, ensacados, estáticos.
A filha mais velha os ferve e transborda
uma espuma leitosa entre as chamas.
Éros agindo…
Chega a tarde,
o amarelo ocre no chão outro derrame.
Ajunta o castigo filial,
chora a criança desamparada,
o caos o sermão depois silêncio.
Carencia o falar.
Logo mais, retorna a filha o leite a caneca
o leiteiro em sua nova bezerra que
toma
devagar
sua porção de vida.
*
Meninas tão gerais
Quando tinha quinze anos
Um homem torto que só
Passara à minha esquerda
Me dera um panfleto de Deus
Nuvens se abriram sol ardeu
Depois doeu tive febre tosse cólica
Corre-corre à metrópole
Tomografei-me toda
Pelada na maca estéril
Doutô me deu a foto da pedrinha
Disse um triste “tadinha, mas não dói.
Vamos tirar sua pepita canhota”.
Sorte a minha que ia ficar rica
Vendendo gramas de mim
No mundo do garimpo.
*
Às vítimas da civilização
Le corps est un parasite de l’âme
Jean Cocteau
Eu queria escrever sobre corpos em paixão,
a volúpia, o ardor, a flexão dos corpos.
Um mundo hilstiano com alguma dose de Deus.
Peço perdão, eu falhei.
Pois tudo o que havia de composto
agora é uma existência solo.
O outro está proibido,
pois se aproximar é muito perigoso.
Sabia que Cristina não viria.
Carne não como mais,
porque recordo que já foi corpo
e tenho nojo.
Estranho a mim mesma
lendo Augusto dos Anjos na cozinha.
“Acho que tenho saudade da peste”, falei a ninguém.
“A culpa fora mais democrática que nosso Estado”.
Talvez eu tenha nostalgia do caos
indomável, meu último resquício.
Mas eu gemo diante da presença do Grande Metal na minha esquina
aguardando os objetos frios como porcos abatidos.
A conservação frigorífica
do ultraje.
Escrevo com um corpo envelopado
ao meu lado.
Brás Cubas sem cova sem face contamina
a inspiração.
Disseram que eu devia produzir.
É isto um poema?
*
Grandes eventos no noticiário
Ele disse:
“Estamos morrendo afogados no seco”.
Eu achei tão bonito aquele verso
e a tevê valorizando o trabalho dos poetas contemporâneos
(apesar de não lembrar o nome deste cânone de nossos tempos)!
Graças a Deus, à família e aos costumes,
Dante poderá revisitar o sub-imundo
e incluir o novo jugo para os servos
voluntários dos holocaustos.
Ah… a modernidade
renovando os clássicos.
*
Três vezes santo
Do mundo da seda à mata
atlântica, o Povo-em-Pé chora
um salgueiro tropical distante.
Um charco de negro sangue,
o mangue, refaz a casa de outrora.
Ave, peregrino! Jerusalém é disputada
com a Baía de Guanabara sagrada.
Nossa Senhora da Ponte!
De Judeia metralhados os montes.
As chagas doutro rio curastes,
às margens pregastes,
mas estas águas de maio
são rubras de Juno,
coturnos sujos agindo soturnos.
Que milagre salvará o patrono
dessa terra de alvo engano?
Vê a hélice demente girar, escorraçado
por novas guilhotinas do Estado.
Espera a cesta de vime dos trópicos
teus infantis e condenados ossos.
Abençoa-lhes Santa Ágatha que
imortal serás de volta à mata.
Grande salgueiro barlavento,
abrace os filhos do tormento!
Nossa Senhora da Ajuda,
ofertai salix à dor muda!
Todo complexo é reprimido,
logo, faço amplo pedido:
Que louvem em 18 de maio
João Pedro de São Gonçalo.