Poemas de Suelen Gom
Suelen Gom é atriz, professora de Letras e Teatro e poeta com livros no forno. Mineira de 1993 e moradora de Niterói-RJ, é mestra e doutoranda em Estudos de Literatura pela UFF. Participa, com a crônica “Poema, Cosmo e 600”, da coletânea Carolinas – a nova geração de escritoras negras brasileiras, sob a orientação de Eliana Alves Cruz, organizada por Julio Ludemir (Flup) e lançada em 2021 pela Bazar do Tempo. Filha de trabalhadora doméstica e lavrador, desaprendeu a domesticar-se e hoje lavra palavras enquanto coze versos. Ig: @gomsuelen.
***
Se
Escreveria o poema
não fossem as vísceras pr’afora
o parto sem hora
da palavra muda caída
dos olhos enervados.
Escreveria o poema
se o silêncio mais fácil fosse
mais fácil que se arrepender.
Escreveria, escreve
ria
escre
veria
escreviria.
(26/07/20)
*
Assalto em coração vermelho
Quero –
olhar essas mãos de unhas
despedaçadas e encontrar
no sinal verde sempre verde
instalado nas linhas de vida
quem foi que roeu meu eu
e não deixou
na minha própria esquina
fazer a dobra
segurando a alma pela cintura
e amarrando as palavras
longe da linha do vermelho da cura
do verso, do espelho da interna luz
e, sem lua, ainda me assombra
– reparar a corrida
que apressa minha sombra
feminina.
(28/05/21)
*
[paro o poema para]
Vê?
Ou melhor: pode sentir
o ressoar da valsa n. 6 dos pneus a subir.
O tilintar das pedrinhas a correr no chão,
sem rumo, sem ramo,
sem direção e documento
mas a identidade é marcada – é preta!
Olha, não é
nada
bonito
o rio sangrento
escorrido
entre os becos escondidos.
[paro pra gritar]
Subiram todos
sofreram todos
morreram-se
todos.
[paro para chorar]
Lodo a lodo
a moça lança o rodo
a ver se seca
a lágrima, toda. Escorrida
e amparada
direto pro esgoto.
Arrasta descompassado
seu rodo
e de pescoço roto
a moça – não – quer dançar e
dança
a valsa mortífera do adeus
balança
o corpo
e
c
a
i
.
[paro
o poema
para].
(02/06/2020)
***
Fora da escola
Ensinaram-me a pôr o pronome
depois de mim, depois da língua
lá no fundo da garganta,
sem espaço ao cantar.
Ensinaram-me a engolir sapos
largar da língua os farrapos
fios queimados
que de nada servem, nem para sujar.
Ensinaram-me a esquecer meu nome
vestir a roupa sem tecido, míngua
de palavras
sem agulha que as resgate das tripas.
Ensinei-me a ser sapo
lançar as vísceras ao mundo, em troca de
tudo-nada.
Pisar os pregos sem sapatos, obrigada, aterrada.
Mas
não sou sapo,
caçamba do mundo
do lixo do mundo
não quero ser seu
substantivo-adjetivo
nunca fui sua
marca de posse
nunca fui sua
carroça precoce
nunca fui sua
catadora de sorte
nunca fui sua
dama da morte
nunca
fui
sequer
fui…
boa sorte!
(04/08/20)
*
Queda de
um poema com sono
cansado, sequer
forças para abrir a boca
em c maiúsculo para começar
escorrega pelas folhas de bananeira
querendo deixar
ou
deitar
palavras.
(05/08/20 – este poema é uma das aberturas à minha dissertação)
*
Verbete
mutum
pássaro preto
feito
de terra seca,
boca seca
avermelhada de sangue, chuva e lama
mutuM
pássaro seco
em relevo
matagal-povoado
de onde arboresço.
(02/03/2021)
*
não… aqui
não soube ainda o que vim fazer aqui
não sobe nem finda o sol daqui
reto, agudo, queima
a parte fina de meus pés.
ainda
o que vim fazer aqui?
evaporou a água dos poemas
quis puxar gotículas para tecer palavras
mas nem teia de aranha segura
a gota que sobe e finda
única,
no céu daqui.
, morri.
sozinha porque não teci palavra
da puxada ficou só a vírgula
e a realidade embaçada
evaporrada.
(28/03/2021)
*
Poema sem flores
Outro dia eles me socaram a boca
quase perdi um dente,
mas não foi como o tapa que me avançou
em criança, por mirar fundo e perguntar denso.
O soco zuniu no ouvido que já quase não funcionava
diante da gritaria dos dias,
mas não foi como a panela que me atirou à cabeça
em criança, por deixar sujo o quintal imundo.
Passam os dias, fincam-me os dentes, parecem
– querem comer minhas tripas!
parecem famintos
de uma carne de dentro, indissolúvel
De punho em punho, dentada em dentada,
quem sorri não sou eu
são eles, que me engolem a passada.
Veja,
Eles
caminham à sua volta.
Cruéis demais para permane-cer em mim,
os versos.
(27/04/21)
*
Poeira de poema
Na entrevista de emprego
o terno me questiona
sobre o que seria “eu”
ou
a usabilidade de meu “eu”
funcional
assim, como os tremores involuntários
da máquina de lavar
a sujeira dos dias
abaixo e a sina do terno
bem, meu botão perdeu
a cabeça de plástico
agora dá choques a quem queira
se achegar em pressa
sem passo de verso
eu, absorta presa
sou atingida pelo poema
que me quebrou a janela
e se perdeu-me
submersa em sua violência
tenho amor sabor desejo rancor
tenho nojo
de um poema sujo que
de minha cabeça pousou nas tripas
e
esfregar-lhe a cara
espetar com vara
não o faz sair
pois bem, “eu”
fui máquina
esfarelada e espanada
os restos, versos
guardados na lata do
bicho
que vem saciar.
(29/05/21)
*
Dia de chuva
esc
re
ver as palavras,
escorregar na vírgula
fugidia do ponto
sem dó nem lei.
não
faço poemas
como quem faz
poemas
, as palavras
ouço poemas
como faz a chuva ao cair
na janela e
em queda livro
livrar no chão a si mesma,
gota-correnteza
(21/04/21)