“Poesia e criação: alguns apontamentos”, um ensaio de Lucinda Persona
“Poesia e criação: alguns apontamentos” é um ensaio assinado pela poeta Lucinda Persona.
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POESIA E CRIAÇÃO: ALGUNS APONTAMENTOS
POESIA ENQUANTO EXPRESSÃO DO AVATAR
Não é fácil aclarar a experiência e o sentido da poesia em nossas vidas ou em uma vida em si, que tem na poesia seu modo de ser e estar. A cada passo palmilhado surge e é acrescentado um elemento novo e assim a poesia vai configurando uma jornada de vislumbres indistintos e de efeitos múltiplos.
Com frequência, citam que “a poesia é um estado de espírito” ou “um estado de graça”, condição particular em que o “eu” está em comunhão com o mundo. Condição em que a pessoa sente ou está consciente de algo misterioso, desassossegador e esplêndido ao mesmo tempo. Isso é caso para se concordar. Entretanto, uma coisa é reconhecer esse fato e outra, mais complexa, é traduzir e significar esse fato.
Analisando mais de perto, detenho-me, armada de indagações sem fim: Qual é o verdadeiro significado da poesia em minha psique? Como me aproximar de sua essência, impregnada em minha individualidade, dançando no lugar que representa meu ser e estar? Como alcançar a frondosidade excessiva de seus ramos secretos através do cosmo? Como dissecar seu tecido etéreo? Como prendê-la em seu estado incorpóreo, em seu denominado “real do espírito”?
E tudo isso, questionado sobre o sentimento da poesia e vivido na mais profunda interioridade, fazem-me recorrer a certas artimanhas que talvez possam tornar mais precisa a explicação. Para tanto, de algum modo, coloco-me dentro de uma fantasia, dentro de uma metáfora. Tratam-se de imagens oferecidas particularmente por uma palavra que venho associando à poesia desde algum tempo. Essa palavra é AVATAR. Tem origem do sânscrito (avatara), significando “descida” do céu à terra. No francês (avatar), filosoficamente diz respeito à reencarnação de um deus e, finalmente, pode ter o sentido de transformação, transfiguração, metamorfose. Todos esses significados imprimem o caráter extraordinário da poesia conforme a percebo, principalmente dentro das regalias da metamorfose. O sentido da palavra esclarece de modo particular um jeito de sentir.
Quando faço minhas colheitas no cotidiano, conferindo relevância ao que geralmente passa batido, ingresso no reino dos avatares ou das transformações. Uma folha de couve já não é mais folha de couve e sim poesia. Um grão de arroz é poesia, igualmente um cristal de açúcar ou então a couve-flor na fervura. É uma lista que se avoluma num supermercado ou numa feira de diversidades. A poesia, portentosa, também se transmuta em restos mortais do Cerrado, em velas acesas num túmulo, numa cadeira, no bolor, na lesma, no pombo ou no vento e na chuva.
Dessa forma, qualquer coisa é tomada pela poesia, essa personagem multifacetada, na verdade uma presença incorpórea, incomensurável, intemporal e inefável, que detém essa faculdade de, aos meus olhos, misturar-se a tudo, em oposição a qualquer racionalismo científico ou visão prática de mundo. Em certo poema do meu livro Leito de Acaso (2004), pergunto: A realidade banal / posta em desequilíbrio / pode adquirir novas propriedades / diversas das conhecidas? Tento deixar nesses versos a urgência interna e constante, a pulsação poética e o aquecimento que me levam a desfazer e a reconstruir o que vejo… seria algo semelhante a transformar o estado físico da matéria, provocando interações entre as moléculas da substância e da poesia, ou vice-versa.
Essa expansão e caracterização um tanto surreal que faço da poesia é o instrumental mais adequado para compreender sua presença e importância, para entender que não me contento com uma visão externa das coisas.
A poesia é minha morada, porquanto me sinto em seu território como um peixe na água ou um pássaro no ar. É meu abrigo predileto, permitindo que raízes de afeto se entrelacem com o mundo. Paradoxalmente, ela habita em mim, na mesma proporção de um conforto, e cada poema é como se fosse uma oração de intercessão. Todas essas emoções/tensões experimentadas ganham corpo na linguagem. No livro O passo do instante (2019), há um poema intitulado “Tu me observas, ó poesia”, neste caso a coloco externamente, como vigilante disfarçada, por aí no espaço.
No afã de bem explicar, eu diria ainda que a poesia está em tudo o que posso medir com os sentidos, funcionando, oscilante, entre os órgãos especiais da visão, audição, paladar, tato e olfato, órgãos que utilizando uma rede nervosa vão recolhendo e enviando ao cérebro todas as sensações. A poesia transita por aí, nos confins do eu e da memória, captando imagens, ondas sonoras, sabores, odores, impressões cutâneas e outras tantas.
Em todo caso, há muito a dizer. Não é possível chegar com segurança ao topo do significado. Então, pergunto: a visão mais clara virá de onde e quando?
CRIAÇÃO POÉTICA
A complexidade da poesia, das abordagens crescentes, da discussão sobre seu comportamento, seus significados e códigos, passa de modo incontornável pelo processo da criação, levando todos (poetas, leitores, pesquisadores) a desfiar, uma a uma, as tramas de um poema, ou então, a desfibrar o que não é feito de ossos, carne e sangue, mas parece.
Numa primeira instância, a poesia se faz pelas súplicas emanadas desse monumental mundo de coisas e seres que aí estão à mercê da misteriosa regência cósmica. Quando o gérmen da poesia está presente, qualquer objeto, qualquer matéria ou pedaço de paisagem deslumbra a vítima que é o poeta. Infinitas experiências são transportadas para um conjunto de palavras em razão do tão conhecido sentimento do mundo que anda de mãos dadas com o desejo de expressão. Talvez se possa dizer que as palavras são entregues à poesia, e essa, por sua vez, requer uma linguagem eficiente e cheia de sentido.
Assim, as obras poéticas se moldam a partir de significativos chamados do mundo. Quase sempre, verdadeiras obsessões arrastam o poeta à ação reconfortante e plena de resolver em palavras o que é visto e sentido. Entretanto, o ato de escrever, convertido em atividade fascinante e prometedora, reúne elementos insondáveis quando se refere a criar uma representação da realidade em foco.
E, nesse processo criativo, são inumeráveis as questões, algumas simples, outras mais profundas, mais delicadas, mais inquietantes. Valendo acrescentar que o autor não tem por completo a explicação de si próprio e de suas lides. E quando se trata de relatar/descrever a técnica do seu fazer literário o escritor encontra dificuldade, porque se vê numa rede de elementos que dizem respeito à vocação (ou dom), às motivações existenciais e vários outros aspectos.
O poeta, conclamado a falar sobre o processo de criação e sendo a ação algo tão particular, ele certamente renovará uma viagem adentro para verificar o que o leva a se desdobrar na elaboração de um poema, a verificar os gestos e matéria-prima envolvidos nessa construção, a verificar ainda a situação em que produz o texto, como escolhe as palavras e lhes dá uma ordenação adequada e significativa ao mundo.
Há dois aspectos sempre considerados quando se trata de discutir a criação poética. São duas categorias que dividem opiniões: uma é o papel da inspiração e a outra o papel da técnica. Para cada autor, certamente, esses dois aspectos são motivos de larga reflexão. Uns reconhecem as duas categorias simultaneamente e outros apenas uma delas.
Particularmente, tenho ponderado e indagado através do tempo qual dessas ações conduz meu fazer poético? Se há inspiração, em que momento atua, qual é o seu peso? Se existe técnica, quais são os componentes? Como surge em mim o poema? Qual é o seu núcleo gerador?
Vale referir que a palavra sempre repercutiu fundo em meu espírito. A descoberta das letras foi a melhor festa da infância. O simples fato de ver as palavras grafadas numa página de livro ou de jornal era, e continua sendo, uma verdadeira aventura. A imagem das letras representando um vocábulo tem o mesmo efeito da mais opulenta paisagem. Certas palavras tomam proporção, desprendem-se e saltam para meu espírito, encaixando-se perfeitamente num quebra-cabeça de emoções. A substância estética de certos nomes é tão sedutora que o campo da poesia germina feito uma lavoura diversificada e inesgotável. De certa forma, da união indissociável do fascínio pela palavra e pelo mundo, nasce uma espécie de vibração amorosa que se expande e exige a comunicação. Sempre estive submetida a um comando poético. Ele é absolutamente constante, projetando relações de soberania e vassalagem.
Na manufatura poética, meu esforço recai sobre a forma de dizer, sobre a escolha das palavras, sobre a linguagem a ser usada e que bem traduza a emoção. São itens que não diferem dos de outros escritores. Sempre considero exaustivamente vários elementos como: o ritmo, a sonoridade, as imagens que desejo representar e, sem dúvida, as palavras. Em verdade, tais esforços assemelham-se a um combate, à luta espelhada no poema “O Lutador” de Carlos Drummond de Andrade.
Tenho elaborado, gradativamente, em diversas circunstâncias da vida comum. Gosto de associar elementos corriqueiros em combinações novas. Não me é possível ficar indiferente a qualquer coisa, objeto ou ser. Ao lado de uma absoluta e constante predisposição, vem a inquietude, o silêncio, a agonia e o gosto de lidar com a palavra, à semelhança de diferentes comensais acomodados ao redor da mesa. Para ser mais exata, ao redor da escrivaninha. E o silêncio é um convidado indispensável.
O que é real tem um papel indutor de destaque. Incontáveis temas são ditados pelo que vejo. Tudo o que nasce na luz do olhar representa um desafio ao meu apetite pelas transfigurações. A paisagem surge como força impositiva e é incorporada. Assim, a visualidade tem um grande significado nessa cruzada da escrita.
Os versos vão refletindo as vivências e o amor/reverência ao cotidiano, universo para o qual minha proposta tem se mantido aberta desde sempre, dentro de um contexto praticamente urbano. Acolho as cidades, aquilo que elas oportunizam, a incerteza das esquinas, a premente tensão que emana das ruas, a ideia e a concretude de um rio, a imprecisão da face coletiva. E nesse espaço de preferências ou elementos magnetizantes, está a casa e seus objetos. Percorro a plataforma doméstica entre a oposição das alegrias e das penas, das serenidades e dos tumultos, ponderando por exemplo que o tempo de vida da casa não é menor do que o meu.
Em termos gerais, aqui estão os esboços sobre minha escrita, sobre aquilo que se passa a partir de minha comunhão com a poesia, sobre essa experiência de representar em palavras o júbilo e a perplexidade perante o cosmo.
Tudo me leva a crer que entre a técnica e a inspiração eu esteja ajustada às duas formas, com predomínio da técnica e admitindo a inspiração, mas com pretensões de aprofundamento na questão.Meu desenho mais viável será com os traços fortes de um operário. Um “ser” operário, edificando tudo o que me impressiona e anima, sempre com uma indescritível receptividade amorosa. Cada poema nascendo de infinitas vibrações e inesperados desdobramentos provocados quando a poesia se infiltra na matéria de outro corpo ou de um objeto qualquer.
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Lucinda Nogueira Persona é professora, poeta, ocupa a Cadeira n. 4 da AML.
Imagem destacada: “Entardecer no Pantanal” de Benedito Nunes.